A violência, em todas as suas formas, é para mim sempre impressionante.
Não me conformo em ver nos hospitais de emergência, em grande quantidade, crianças e adolescentes atropelados em portas de escolas, vítimas de acidentes de trânsito e de quedas, muitas vezes evitáveis, ou de intoxicações diversas.
O problema é saber quais dessas situações poderiam ter sido prevenidas e quais delas foram intencionais. Voltando à violência de pais contra filhos, e respondendo à pergunta, vou citar alguns casos que mais me marcaram.
Evidentemente, os piores foram aqueles que chegaram à morte. Lembro-me do Willian, um menino de cerca de dois anos de idade, que chegou morto à sala de emergência, numa manhã de sábado.
Apresentava inúmeros sinais externos de violência e fratura do crânio.
A pessoa que o levou era uma mulher de cerca de 30 anos, mãe substituta. Ela deitava-se sobre o corpo do menino e chorava, gritando: "O que fizeram com você, Willian? Quem fez isso? Vou me vingar."
Pouco depois, confessou que havia torturado o garoto durante dias, como represália pelo fato de a mãe biológica não estar mandando regularmente a importância combinada para a manutenção do menino.
Ela foi presa e condenada: pena máxima, por homicídio doloso.
Outra criança que morreu, com cerca de um ano de idade, encontrei na emergência em um respirador, com inúmeras fraturas de crânio.
A mãe, tranqüila e às vezes até dormindo ao lado da criança, informou que a encontrou caída, junto à cama, quando chegou em casa.
O pai estava lá. A criança havia sido agredida violentamente na cabeça, com algum instrumento.
Os casos que chegam a um hospital público são sempre de grande violência. Uma mãe colocou a mão da criança em panela com água fervendo, causando queimaduras de segundo grau profundo, queimadura em luva, típica de maus-tratos físicos.
Outra queimou a boca do filho com uma colher aquecida, porque ele dizia palavrões.
Outros pais colocaram a filha em uma bacia com água quente para castigá-la porque não controlava oesfíncterurinário à noite. Outros, queimaram o períneo da filha com objeto aquecido porque ela se masturbava.
Ou queimaram a mão de uma menina na prancha do fogão, ou colocaram um bebê sentado na frigideira com óleo fervendo.
São todos exemplos de casos graves que chegam aos hospitais.
Mas quantas crianças são maltratadas e nem sequer recebem atendimento?
Os casos levados ao SOS Criança da Abrapia são menos graves, permitindo uma ação preventiva mais eficaz.
Em relação à negligência, o que mais me impressiona são as situações de crianças deixadas sozinhas em casa - que se intoxicam, sofrem quedas e, às vezes, morrem ou ficam mutiladas em conseqüência de incêndio em casa, com graves queimaduras, ou quedas de apartamentos altos.
O abuso sexual, quando chega ao hospital, é sempre muito grave, com lesões graves de genitália e ânus. Os casos levados freqüentemente à Abrapia apresentam menores conseqüências físicas, sem marcas evidentes e exigindo para o diagnóstico a aplicação de técnicas sofisticadas de revelação do abuso sexual na família.
Maus-tratos e negligência de pais contra filhos continuam a ocorrer em todos os países do mundo.
A literatura científica está cheia de casos quase inacreditáveis: bebês colocados em forno de microondas, ou mortos por aspiração de pimenta em pó colocada pelos pais nas suas bocas, ou assassinados por asfixia por travesseiro.
Recordo-me que, certa vez, fiz uma conferência sobre violência doméstica em um congresso internacional de cirurgia pediátrica, no Rio.
Após minha exposição, o presidente do congresso, um médico suíço, parabenizou-me, mas disse que já conhecia todas as situações que eu havia apresentado.
Na sua terra também ocorria o mesmo. E citou casos que não conhecemos pessoalmente, como colocar uma criança, para castigá-la, em um armário fechado, ou para fora de casa, na neve. Efetivamente, o que mais me impressiona não são os casos extremos, exemplares, que citamos.
O pior é saber que a violência de pais e parentes contra crianças que deles dependem totalmente continua a existir, em todas as suas formas, com enorme freqüência, em todos os países do mundo.
Por analogia com as estatísticas americanas, pode-se calcular que cerca de 40 mil crianças e adolescentes são severamente maltratados pelos seus responsáveis, todos os anos, no Rio de Janeiro e no Brasil, no mínimo 600 mil ao ano.
Dessas, 1800 (0,3%) morrem.
Lamentavelmente, poucos são os casos notificados.
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