Então levantou-se de uma vez, tirou a roupa de dormir, e vestiu o calção azul, herdado de algum primo paulistano. Calçou as chinelas havaianas, uma de cada cor, por que era assim que faziam para aproveitar tudo o que podia; se uma tira arrebentasse, tirava de outra ou mesmo catava alguma que encontrada no lixo. abotoava a sua base e pronto! Isso era apenas um detalhe. O que importava na verdade, era ter algo para por os pés, e não pisar da cama direto no chão frio de cimento, porquê isso segunda a mãe era muito perigoso e podia causar uma 'constipação'. Ella, não sabia exatamente o que significava, mas segundo os mais velhos, podia dar 'entrevaduras', ficar com o pescoço torto, etc. Automaticamente atendia as orientações maternas de forma religiosa, e sem pestanejar. Pronto! Após conferir dos irmãos quem ainda estava dormindo, saiu do quarto que dividia na época com mais 6 irmãos dos oito, pois o mais novinho, o ''neném da vez'', sempre dormia no quarto dos pais.
Na cozinha, verificou que a mãe já botara o mingau de fubá para esfriar nos velhos pratos esmaltados; um para cada um dos filhos. Ah como Ella gostava daquele momento! Sua tática era pegar o prato já meio frio, o suficiente para ter formado uma película superficial, que ela ia curetando por baixo, e saboreando o mingau morno e bem temperado que só a mãe sabia fazer com o fubá mimoso; o mais fino e saboroso que havia!
Depois do Bença mamãe! e do Deus te abençoe filha! Ella então saía pela porta cozinha, indo lavar a cara lá na lavasca, ou 'batedor', espécie de lavanderia a céu aberto, próxima a cisterna, composto de um jirau , espécie de mesa, feito de paus rústicos,e batedor, uma grande lasca de taboa inclinada apoiada num tronco fincado no chão onde se batia e ou esfregavam-se as roupas para remover a sujeira.
Sobre o jirau, sempre ficava um 'bacião' de Folha de Flandre e era sobre este que se lavava a 'cara', com a água retirada do balde apoiado sobre a beirada do poço, com uma caneca feita de uma lata cuja alça fora colocada por algum 'folheiro' profissional que transformava latão em utensílios domésticos.
Ella, soltou o balde para dentro do poço, e controlou o sarilho
Manivela, feita de pau em forma de "L", presa sobre duas forquilhas, onde a corda era enrolada |
até ouvir o som do balde tocando a água lá no fundo. Ouviu e sentiu o momento em que este adernou enchendo-se d'água. Mesmo assim, Ella conferiu com suave puxão, para sentir no peso, se estava mesmo cheio.
Então, acionou o sariu, girando lentamente seu manete para frente, até vislumbrar o balde , o qual recolheu, pela alça presa a corda, colocando-o na borda tijolada do poço. Baixou a tampa de madeira, hábito de segurança observado rigorosamente por todos da casa.
Era comum acidentes com animais ou mesmo pessoas caindo dentro de cisternas. Ella havia perdido ainda bem criança, uma amiga assim, e apesar de saber que fora um suicídio, jamais deixava de observar a regra vital.
Bom, sigamos enfim: Ella lavou o rosto, escovou os dentes com 'Dentifricio', tomou um copo da água fresca e com sabor inigualável viria a saber depois com os anos, e foi para seu prato de mingau de fubá mimoso, o melhor fubá tirado do moinho, o mais fino. Enquanto saboreava, via os irmãos acordando e seguindo a mesma rotina que fizera a pouco, vindo um a um sentar-se nalgum canto com seu prato de mingau. Lá fora o sol brilhando era um convite urgente para mais um dia de aventura.
Ella, terminou seu desejum, colocou seu prato dentro do tacho sobre a mesinha da cozinha e ainda sentindo o sabor do mingau na boca, voou para o quintal, em busca da saída para o campo. Iria visitar os pontos nos quais estava interessada nos últimos dias; O novo pé de mangava que descobria carregado de frutos 'de vez' (Quase maduros, num ponto específico que Ella podia determinar quantos dias estariam bons para serem comidos); O tipo de coisa, que só se aprende vivenciando. Ella sabia como ninguém fazer essa espécie de leitura da natureza. E por isso mesmo, costumava marcar mentalmente os pontos onde haviam frutos de vez e quanto tempo se daria o ponto exato para a coleta, e a brincadeira, era conseguir chegar primeiro, antes que outra pessoa os colhessem, ou animal ou passarinhos ou saboreasse. Não havia nenhuma estratégia, mas apenas uma brincadeira, cuja satisfação íntima era todo o prêmio. Nessa manhã de nossa história, Ella iria em busca da sua magabeira recentemente descoberta, detrás de um caramanchão , cujo acesso um tanto difícil protegia seu pequeno tesouro. Lá foi Ella, pela bem conhecida trilha do cruzeiro, caminho quase obrigatório para suas aventuras. Ia sozinha por enquanto, pois sabia que a qualquer momento, ouviria o tropel tão conhecido do amigo Joly, que sentindo a sua ausência, logo descobria sua pista, e saía correndo em seu encalço. Esta era também parte da brincadeira. Ella adorava esses momentos com o velho e bom amigo Joly. As vezes, talvez por impaciência, ou a propósito, ele latia ao longe, e Ella respondia com um comprido assobio. Em breve ouvia o tropel e sabia que deveria sair da frente, porque descoberta sua localização Joly vinha numa carreira desabalada só parando mais adiante de onde ela estava, e se ficasse no caminho corria o risco de ser atirada ao solo. Tudo fazia parte da brincadeira quase diária; exceção dos dias de provas na escola ou de chuva torrencial.
Enquanto caminhava pelo serrado, Ella ia descobrindo pequenos detalhes pelo terreno; Coisas interessantes para a menina que adorava curtir a natureza a sua volta. Aqui, um vegetal cujo fogo ateado por alguém, apresentava um belíssimo broto no toco do tronco enegrecido pelas chamas devastadora, mas que pelo milagre da vida, ressurgia das cinzas valente como nunca. Ella acompanharia aquela nova etapa de vida. Acolá um casulo, de onde mais alguns dias sairia mais uma linda borboleta, mais adiante, verificava se a dona aranha, que encontrara preparando nova teia já botara os ovos, que ficaria envoltos num caprichoso novelo no centro de uma teia em forma de mandala, de onde brilhavam gotas de sereno, refletindo as cores do Sol.
Seu irmão as vezes pegavam-nas, e até as levava para o quintal onde tinham muitas plantas, e ficavam ambos monitorando o inseto, descobrindo, novas particularidades da espécie. Coisas de garotos mateiros!
Descobriam novos ninhos, conferiam quantos filhotes eclodiam dos ovinhos e acompanhavam o crescimento deles, até que voavam fortes e seguros.
Mas nesta manhã, Ella contava apenas com a presença do Jolly, que também fazia lá suas própria excursão, aparecendo todo festivo de vez em quando desaparecendo a seguir atras de alguma pista de teiú,um calango verde ou codorna. Não era um cachorro caçador, mas gostava de ouriçar as codornas em seus ninhos ao rés do chão.
Calango Verde do Cerrado |
Era tão fascinante, estar viva e poder desfrutar de uma manhã como aquela, em meio ao campo, sentindo os pés molhados pelas gotículas de sereno deixadas sob as folhas, sentir ao mesmo tempo o calor do sol despontando no horizonte, e o restinho do frio da noite que acabara de terminar, o cantar dos passarinhos, ou o trilar de algum grilo dorminhoco, escondido em alguma toca escura, o cheiro de toda essa mistura,da terra, dos frutos maduros, as novas flores desabrochando para enfeitar um novo dia, e as folhas, nas quais ia tocando enquanto caminhava, atenta a algo, ou totalmente descuidada, apenas gozando as delícias de um novo dia!
Ella não pensava nas horas, mas sabia de alguma forma a hora de retornar para casa e cumprir suas tarefas de colaboração com a rotina da mãe; e esta parecia saber que a filha necessitava desses momentos tão seus!
De volta para casa, alegre e bem disposta Ella estava pronta para junto com os irmãos fazer tudo de forma disciplinada dentro daquele lar que a recebera por filha, com tanto carinho, liberdade com responsabilidade e amor.
Ah como Ella era feliz!!!
Como fora bom ser criança!!!
Como agradecia a Deus por cada dia de vida!!!
E como Ella sente saudades daqueles dias!!!
Nenhum comentário:
Postar um comentário