Marília Moschkovich in Primavera Brasileira17 min rea(Na íntegra)
Está tudo tão estranho, e não é à toa.
Um relato do quebra-cabeças que fui montando nos últimos dias. Aviso que o post é longo, mas prometo fazer valer cada palavra.
[*nota da autora, adicionada após muitos comentários e compartilhamentos desviando um pouco o sentido do texto: este é um texto de esquerda]
Começo explicando que não ia postar este texto na internet. Com medo. Pode parecer bobagem, mas um pressentimento me dizia que o papel impresso seria melhor. O papel impresso garantiria maiores chances de as pessoas lerem tudo, menores chances de copiarem trechos isolados destruindo todo o raciocínio necessário.
Enquanto forma de comunicação, o texto exige uma linearidade que é difícil. Difícil transformar os fatos, as coisas que vi e vivi nos últimos dias em texto. Estou falando aqui das ruas de São Paulo e da diferença entre o que vejo acontecer e o que está sendo propagandeado nos meios de comunicação e até mesmo em alguns blogs.
Talvez essa dimensão da coisa me seja possível porque conheço realmente muita gente, de vários círculos; talvez porque sempre tenha sido ligada à militância política, desde adolescente; talvez porque tenha tido a oportunidade de ir às ruas; talvez porque pude estar conectada na maior parte do tempo. Não sei. Mas gostaria de compartilhar com vocês.
E gostaria que, ao fim, me dissessem se estou louca. Eu espero verdadeiramente que sim, pois a minha impressão é a de que tudo é muito mais grave do que está parecendo.
Tentei escrever este texto mais ou menos em ordem cronológica. Se não foi uma boa estratégia, por favor me avisem e eu busco uma maneira melhor de contar. Peço paciência. O texto é longo.
1. Contexto é bom e mantém a pauta no lugar
Hoje é dia 18 de junho de 2013. Há uma semana, no dia 10, cerca de 5 mil pessoas foram violentamente reprimidas pela Policia Militar paulista na Avenida Paulista, símbolo da cidade de São Paulo. Com a transmissão dos horrores provocados pela PM pela internet, muitas pessoas se mobilizaram para participar do ato seguinte, que seria realizado no dia 13. A pauta era a revogação no aumento das tarifas de ônibus, que já são caras e já excluem diversos cidadãos de seu direito de ir e vir, frequentando a própria cidade onde moram.
No dia 13, então, aconteceu a primeira coisa estranha, que acendeu uma luzinha amarela (quase vermelha de tão laranja) na minha cabeça: os editoriais da folha e do estadão aprovavam o que a PM tinha feito no dia 10 de junho e, mais do que isso, incentivavam ações violentas da pm “em nome do trânsito” [aliás, alguém me faz um documentário sensacional com esse título, faz favor? ]. Guardem essa informação.
Logo após esses editoriais, no fim do dia, a PM reprimiu cerca de 20mil pessoas. Acompanhei tudo de casa, em outra cidade. Na primeira hora de concentração para a manifestação foram presas 70 pessoas, por sua intenção de participar do protesto. Essa intenção era identificada pela PM com o agora famoso “porte de vinagre” (já que vinagre atenua efeitos do gás lacrimogêneo). Muitas pessoas saíram feridas nesse dia e, com os horrores novamente transmitidos - mas dessa vez também pelos grandes meios de comunicação, inclusive esses dos editoriais da manhã, que tiveram suas equipes de reportagem gravemente feridas -, muita gente se mobilizou para o próximo ato.
2. Desonestidade pouca é bobagem
No próprio dia 13, à noite, aconteceu a segunda “coisa estranha”. Logo no final da pancadaria na região da Paulista, sabíamos que o próximo ato seria na segunda-feira, dia 17 de junho. Me incluíram num evento no Facebook, com exatamente o mesmo nome dos eventos do MPL, as mesmas imagens, bandeiras, etc. Só que marcado para sexta-feira, o dia seguinte. Eu dei “ok”, entrei no evento, e comecei a reparar em posts muito, mas muito esquisitos. Bandeiras que não eram as do MPL (que conheço desde adolescente), discursos muito voltados à direita, entre outros. O que estava ali não era o projeto de cidade e de país que eu defendo, ou que o MPL defende.
Dei uma olhada melhor: eram três pessoas que haviam criado o evento. Fucei o pouco que fica público no perfil de cada um. Não encontrei nenhuma postagem sobre nenhuma causa política. Apenas postagens sobre outros assuntos. Lá no fim de um dos perfis, porém, encontrei uma postagem com um grupo de pessoas em alguma das tais marchas contra a corrupção. Alguma coisa com a palavra “Juventude”, não me lembro bem. Ficou claro que não tinha nada a ver com o MPL e, pior que isso, estavam tentando se passar pelo MPL.
Alguém me deu um toque e observei que a descrição dizia o trajeto da manifestação (coisa que o MPL nunca fez, até hoje, sabiamente). Além disso, na descrição havia propostas como “ir ao prédio da rede globo” e “cantar o hino nacional”, “todos vestidos de branco”. O alerta vermelho novamente acendeu na minha cabeça. Hino nacional é coisa de integralista, de fascista. Vestir branco é coisa de movimentos em geral muito ou totalmente despolitizados. Basta um mínimo de perspectiva histórica pra sacar. Pois bem.
Ajudei a alertar sobre a desonestidade de quem quer que estivesse organizando aquilo e meu alerta chegou a uma das pessoas que, parece, estavam envolvidas nessa organização (ou conhecia quem estava). O discurso dela, que conhece alguém que eu conheço, era totalmente despolitizado. Ela falava em “paz”, “corrupção” e outras palavras de ordem vazias que não representam reivindicação concreta alguma, e muito menos um projeto de qualquer tipo para a sociedade, a cidade de São Paulo, etc. Mais um pouco de perspectiva histórica e a gente entende no que é que palavras de ordem e reivindicações vazias aleatórias acabam. Depois de fazer essa breve mobilização na internet com várias outras pessoas, acabaram mudando o nome e a foto do evento, no próprio dia 13 de noitão. No dia seguinte transferiram o evento para a segunda-feira, “para unir as forças”, diziam.
3. E o juiz apita! Começa a partida!
Seguiu-se um final de semana extremamente violento em diversos lugares do país. Era o início da Copa das Confederações e muitos manifestantes foram protestar pelo direito de protestarem. O que houve em sp mostrou que esse direito estava ameaçado. Além disso, com a tal “lei da copa”, uma legislação provisória que vale durante os eventos da FIFA, em algumas áreas publicas se tornam proibidas quaisquer tipos de manifestações políticas. Quer dizer, mais uma ameaça a esse direito tão fundamental numa [suposta] democracia.
No final de semana as manifestações não foram tão grandes, mas significativas em ao menos três cidades: Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro. No DF e no RJ as polícias militares seguiram a receita paulista e foram extremamente violentas. A polícia mineira, porém, parecia um exemplo de atuação cidadã, que repassamos, compartilhamos e apoiamos em redes sociais do lado de cá do sudeste.
Não me lembro bem, mas acho que foi no intervalo entre uma coisa e outra que percebi a terceira “coisa estranha”. Um pouco depois do massacre na região da Paulista, e um pouco antes do final de semana de horrores, mais um sinal: ficamos sabendo que uma conhecida distante, depois do dia 13, pegou um ônibus para ir ao Rio de Janeiro. Essa pessoa contou que a PM paulista parou o ônibus na estrada, antes de sair do Estado de São Paulo. Mandaram os passageiros descerem e policiais entraram no veículo. Quando os passageiros subiram novamente, todas as coisas, bolsas, malas e mochilas estavam reviradas. A policial perguntou a essa pessoa se ela tinha participado de algum dos protestos. Pediu pra ver o celular e checou se havia vídeos, fotografias, etc.
Não à toa e no mesmo “clima”, conto pra vocês a quarta “coisa estranha”: descobrimos que, após o ato em BH, um rapaz identificado como uma das lideranças políticas de lá foi preso, em sua casa. Parece que a nossa polícia exemplar não era tão exemplar assim, mas agora ninguém compartilhava mais. Coisas semelhantes aconteceram em Brasília, antes mesmo das manifestações começarem.
4. Sequestraram a pauta?
Então veio a segunda-feira. Dia 17 de junho de 2013. Ontem. Havia muita gente se prontificando a participar dos protestos, guias de segurança compartilhados nas redes, gente montando pontos de apoio, etc. Uma verdadeira mobilização para que muita gente se mobilizasse. Estávamos otimistas.
Curiosamente, os mesmos meios de comunicação conservadores que incentivaram as ações violentas da PM na quinta-feira anterior (13) de manhã, em seus editoriais, agora diziam que de fato as pessoas deveriam ir às ruas. Só que com outras bandeiras. Isso não seria um problema, se as pessoas não tivessem, de fato, ido à rua com as bandeiras pautadas por esses grupos políticos (representados por esses meios de comunicação). O clima, na segunda-feira, era outro. Era como se a manifestação não fosse política e como se não estivesse acontecendo no mesmo planeta em que eu vivo. Meu otimismo começou a decair.
A pauta foi sequestrada por pessoas que estavam, havia alguns dias, condenando os manifestantes por terem parado o trânsito, e que são parte dos grupos sociais que sempre criminalizaram os movimentos sociais no Brasil (representados por um pedaço da classe política, estatisticamente o mais corrupto - não, não está nem perto de ser o PT -, e pelos meios de comunicações que se beneficiam de uma política de concessões da época da ditadura). De repente se falava em impeachment da presidenta. As pessoas usavam a bandeira nacional e se pintavam de verde e amarelo como ordenado por grandes figurões da mídia de massas, colunistas de opinião extremamente populares e conservadores.
As reações de militantes variavam. Houve quem achasse lindo, afinal de contas, era o povo nas ruas. Houve quem desconfiasse. Houve quem se revoltasse. Houve quem, entre todos os sentimentos possíveis, ficasse absolutamente confuso. Qualquer levante popular em que a pauta não eh muito definida cria uma situação de instabilidade política que pode virar qualquer coisa. Vimos isso no início do Estado Novo e no golpe de 1964, ambos extremamente fascistas. Não quer dizer que desta vez seria igual, mas a história me dizia pra ficar atenta.
5. Não, sequestraram o ato!
A passeata do dia 17, segunda-feira, estava marcada para sair do Largo da Batata, que fica numa das pontas da avenida Faria Lima. Não se sabia, não havia decisão ainda, do que se faria depois. Aos que não entendem, a falta de um trajeto pré-definido se justifica muito bem por duas percepções: (i) a de que é fácil armar emboscadas para repressão quando divulga-se o trajeto; e, (ii) mais importante do que isso, a percepção de que são as pessoas se manifestando, na rua, que devem definir na hora o que fazer. [e aqui, se vocês forem espertos, verão exatamente onde está a minha contradição - que não nego, também me confunde]
A passeata parecia uma comemoração de final de copa do mundo. Irônico, não? Começamos a teorizar (sem muita teoria) que talvez essa fosse a única referência de manifestações públicas que as pessoas tivessem, em massa:o futebol. Os gritos eram do futebol, as palavras de ordem eram do futebol. Muitas camisetas também eram do futebol. Havia inclusive uns imbecis soltando rojões, o que não é muito esperto pois pode gerar muito pânico considerando que havia poucos dias muita gente ali tinha sido bombardeada com gás lacrimogêneo. Havia pessoas brincando com fogo. [guardem essa informação do fogo também]
Agora uma pausa: vocês se lembram do fato estranho número dois? O evento falso no facebook? Bom, o trajeto desse evento falso incluía a Berrini, a ponte Estaiada e o palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado. Reparem só.
Quando a passeata chegou ao cruzamento da Faria Lima com a Juscelino, fomos praticamente empurrados para o lado direito. Nessa hora achamos aquilo muito esquisito. Em nossas cabeças, só fazia sentido ir à Paulista, onde havíamos sido proibidos de entrar havia alguns dias. Era uma questão de honra, de simbologia, de tudo. Resolvemos parar para descobrir se havia gente indo para o lado oposto e subindo a Brigadeiro até a Paulista. Umas amigas disseram que estavam na boca do túnel. Avisei pra não irem pelo túnel que era roubada. Elas disseram então que estavam seguindo a passeata pela ponte, atravessando a Marginal Pinheiros.
Demoramos um tanto pra descobrirmos, já prontos pra ir para casa broxados, que havia gente subindo para o outro lado. Gente indo à esquerda. Era lá que preferíamos estar. Encontramos um outro grupo de pessoas conhecidas e amigas e seguimos juntos. As palavras de ordem não mudaram. Eram as mesmas em todos os lugares. As pessoas reproduziam qualquer frase de efeito tosca de maneira acrítica, sem pensar no que estavam dizendo. Efeito “multidão”, deve ser.
As frases me incomodaram muito. Nem uma só palavra sobre o governador que ordenara à PM descer bala, cassetete e gás na galera havia poucos dias. Que promove o genocídio da juventude negra nessa cidade todos os dias, há 20 anos. Nem mesmo uma. Os culpados de todos os problemas do mundo, para os verde-amarelos-bandeira-hino eram o prefeito e a presidenta. Ou essas pessoas são ignorantes, ou são extremamente desonestas.
Nem chegamos à Paulista, incomodados com aquilo. Fomos para casa nos sentindo muito esquisitos. Aí então conseguimos entender que aquelas pessoas do evento falso no facebook tinham conseguido de alguma maneira manobrar uma parte muito grande de pessoas que queria ir se manifestar em outro lugar. A falta de informação foi o que deu poder para esse grupo naquele momento específico. Mas quem era esse grupo? Não sei exatamente. Mas fiquei incomodada.
6. O centro em chamas.
Quem diria que essa sensação bizarra e sem nome da segunda-feira faria todo sentido no dia seguinte? Fez. Infelizmente fez. O dia seguinte, “hoje”, dia 18 de junho de 2013, seria decisivo. Veríamos se as pessoas se desmobilizariam, se a pauta da revogação do aumento se fortaleceria. Essa era minha esperança que, infelizmente, não se confirmou. A partir daqui são todos fatos recentes, enquanto escrevo e vou tentar explica-los em ordem cronológica. Aviso que foram fazendo sentido aos poucos, conforme falávamos com pessoas, ouvíamos relatos, descobríamos novas informações. Essa é minha tentativa de relatar o que eu vi, vivi, experienciei.
No fim da tarde, pegamos o metrô Faria Lima lotadíssimo um pouco depois do horário marcado para a manifestação. Perguntei na internet, em redes sociais, se o ato ainda estava na concentração ou se estava andando, e para onde. Minha intenção era saber em qual estação descer. Me disseram, tomando a televisão como referencia (que é a referencia possível, já que não havia um único comunicado oficial do MPL em lugar algum) que o ato estava na prefeitura. Guardem essa informação.
Fomos então até o metrô República. Helicópteros diversos sobrevoavam a praça e reparei na quinta “coisa estranha”: quase não havia polícia. Acho que vimos uns três ou quatro controlando curiosamente a ENTRADA do metrô e não a saída… Quer dizer, quem entrasse no metro tinha mais chance de ser abordado do que quem estava saindo, ao contrário do dia 13.
A manifestação estava passando ali e fomos seguindo, até que percebemos que a prefeitura era outro lado. Para onde estavam indo essas pessoas? Não sabíamos, mas pelos gritos, pelo clima de torcida de futebol, sabíamos que não queríamos estar ali, endossando algo em que não acreditávamos nem um pouco e que já estávamos julgando ser meio perigoso. Quando passamos em frente à câmara de vereadores, a manifestação começou a vaiar e xingar em massa. Oras, não foram eles também que encheram aquela câmara com vereadores? O discurso de ser “apolítico” ou “contra” a classe política serve a um único interesse, a história e a sociologia nos mostram: o dos grupos conservadores para continuarem tocando a estrutura social injusta como ela é, sem grandes mudanças. Pois era esse o discurso repetido ali.
Resolvemos então descer pela rua Jandaia e tentar voltar à Sé, pois disseram nas redes sociais que o ato real, do MPL, estava no Parque Dom Pedro. Como aquilo fazia mais sentido do que um monte de pessoas bem esquisitas, com cartazes bem bizarros, subindo para a Paulista, lá fomos nós.
Outro fato estranho, número seis: no meio da Rua Jandaia, num local bem visível para qualquer passante nos viadutos do centro, um colchão em chamas. A manifestação sequer tinha passado ali. Uma rua deserta e um colchão em chamas. Para quê? Que tipo de sinal era aquele? Quem estava mandando e quem estava recebendo? Guardamos as mascaras de proteção com medo de sermos culpados por algo que não sabíamos sequer de onde tinha vindo e passamos rápido pela rua.
Cruzamos com a mesma passeata, mais para cima, que vinha lá da região que fica mais abaixo da Sé, mas não sabíamos ainda de onde. Atrás da catedral, esperamos amigos. Uma amiga disse que o marido estava chateado porque não conseguiu pegar trem na Vila Olímpia. Achamos normal, às vezes a CPTM trava mesmo, daí essa porcaria de transporte e os protestos, etc. pois bem. Guardem a informação.
Uma amiga ligou dizendo que estava perto do teatro municipal e do Vale do Anhangabaú, que estava “pegando fogo”. Imbecil que me sinto agora, na hora achei que ela estava falando que estava cheio de gente, bacana, legal. [que tonta!] Perguntei se era o ato do MPL, se tinha as faixas do MPL. Ela disse que sim mas não confiei muito. Resolvemos ir ver.
[A partir daqui todos os fatos são “estranhos”. Bem estranhos.]
O clima no centro era muito tenso quando chegamos lá. Em nenhum dos outros lugares estava tão tenso. Tudo muito esquisito sem sabermos bem o quê. Os moradores de rua não estavam como quem está em suas casas. Os moradores de rua estavam atentos, em cantos, em grupos. Poucos dormiam. Parecia noite de operação especial da PM (quem frequenta de verdade a cidade de São Paulo, e não apenas o próprio bairro, sabe bem o que é isso entre os moradores de rua).
Só que era ainda mais estranho: não havia polícia. Não havia polícia no centro de São Paulo à noite. No meio de toda essa onda. Não havia polícia alguma. Nadinha de nada, em lugar nenhum.
Na Sé, descobrimos mais ou menos o caminho e fomos mais ou menos andando perto de outras pessoas. Um grupo de franciscanos estava andando perto de nós, também. Vimos uma fumaça preta. Fogo. MUITO fogo. Muito alto. O centro em chamas.
Tentamos chegar mais perto e ver. Havia pessoas trepadas em construções com latas de spray enquanto outros bradavam em volta daquela coisa queimando que não conseguíamos identificar. Outro colchão? Os mesmos que deixaram o colchão queimando na Jandaia? Mas quem eram eles?
De repente algumas pessoas gritaram e nós,mais outros e os franciscanos, corremos achando que talvez o choque estaria avançando. Afinal de contas, era óbvio que a polícia iria descer o cacete em quem tinha levantado aquele fogaréu (aliás, será q ela só tinha visto agora, que estava daquele tamanho todo?). Só que não.
Na corrida descobrimos que era a equipe da TV Record. Estavam fugindo do local - a multidão indo pra cima deles - depois de terem o carro da reportagem queimado. Não, não era um colchão. Era o carro de reportagem de uma rede de televisão. O olhar no rosto da repórter me comoveu. Ela, como nós, não conseguia encontrar muito sentido em tudo que estava acontecendo. Ao lado de onde conversávamos, uns quatro policiais militares. Parados. Assistindo o fogo, a equipe sendo perseguida… Resolvemos dar no pé que bobos nós não somos. Tinha algo muito, mas muito errado (e estranho) ali.
Voltamos andando bem rápido para a Sé, onde os moradores de rua continuavam alertas, e os franciscanos tentavam recolher pertences caídos pelo chão na fuga e se organizarem novamente para dar continuidade a sua missão. Nós não fomos tão bravos e decidimos voltar para nossas casas.
7. Prelúdio de um… golpe?
No metrô um aviso: as estações de trem estavam fechadas. É, pois é, aquela coisa que havíamos falado antes e tal. Mal havíamos chegado em casa, porém, uma conhecida posta no facebook que um amigo não conseguiu chegar em lugar nenhum porque algumas pessoas invadiram os trilhos da CPTM e várias estações ficaram paradas, fechadas. Não era caos “normal” da CPTM, nem problemas “técnicos” como a moça anunciava. Era de propósito. Seriam os mesmos do colchão, do carro da Record?
Lemos, em seguida, em redes sociais, que havia pessoas saqueando lojas e destruindo bancos no centro. Sabíamos que eram o mesmos. Recebi um relato de que uma ocupação de sem-teto foi alvo de tentativa (?) de incêndio. Naquele momento sabíamos que, quem quer que estivesse por trás do “caos” no centro, da depredação de ônibus na frente do Palácio dos Bandeirantes no dia anterior, de tentativas de criar caos na prefeitura, etc. não era o MPL. Também sabíamos que não era nenhum grupo de esquerda: gente de esquerda não quer exterminar sem-teto. Esse plano é de outro grupo político, esse que manteve a PM funcionando nos últimos 20 anos com a mesma estrutura da época da ditadura militar.
Algum tempo depois, mais uma notícia: em Belo Horizonte, onde já se fala de chamar a Força Nacional e onde os protestos foram violentíssimos na segunda-feira, havia ocorrido a mesma coisa. Depredação total do centro da cidade, sem nenhum policial por perto. Nenhunzinho. Muito estranho.
Nessa hora eu já estava convencida de que estamos diante de uma tentativa muito séria de golpe, instauração de estado de exceção, ou algo do tipo. Muito séria. Muito, muito, muito séria. Postei algumas coisas no facebook, vi que havia pessoas compartilhando da minha sensação. Sobretudo quem havia ido às ruas no dia de hoje.
Um pouquinho depois, outra notícia: a nova embaixadora dos EUA no Brasil é a mesma embaixadora que estava trabalhando no Paraguai quando deram um golpe de estado em Fernando Lugo.
Me perguntaram e eu não sei responder qual golpe, nem por que. Mas se o debate pela desmilitarização da polícia e pelo fim da PM parece que finalmente havia irrompido pelos portões da USP, esse seria um ótimo motivo. Nem sempre um golpe é um golpe de Estado. Em 1989 vivemos um golpe midiático de opinião pública, por exemplo. Pode ser que estejamos diante de outro. Essa é a impressão que, ligando esses pontos, eu tenho.
Já vieram me falar que supor golpe “desmobiliza” as pessoas, que ficam em casa com medo. De forma alguma. Um “golpe” não são exércitos adentrando a cidade. Não necessariamente. Um “golpe” pode estar baseado na ideia errônea de que devemos apoiar todo e qualquer tipo de indignação, apenas porque “o povo na rua é tão bonito!”.
Curiosamente, quando falei sobre a manifestação do dia 13 com meus alunos, no dia 14, vários deles me perguntaram se havia chances de golpes militares, tomadas de poder, novas ditaduras. A minha resposta foi apenas uma, que ainda sustento sobre este possível golpe de opinião pública/mídia: em toda e qualquer tentativa de golpe, o que faz com que ela seja ou não bem-sucedida é a resposta popular ao ataque. Em 1964, a resposta popular foi o apoio e passamos a viver numa ditadura. Nos anos 2000, a reposta do povo venezuelano à tentativa de golpe em Chávez foi a de rechaço, e a democracia foi restabelecida.
O ponto é que depende de nós. Depende de estarmos nas ruas apoiando as bandeiras certas (e há pessoas se mobilizando para divulgar em tempo real, de maneira eficaz, onde está o ato contra o aumento da passagem, porque já não podemos dizer que é apenas “um” movimento, como fez Haddad em sua entrevista coletiva). Depende de nos recusarmos a comprar toda e qualquer informação. Depende de levantarmos e irmos ver com nossos próprios olhos o que está acontecendo.
[update: escrevi um pouco melhor sobre como eu acho que esse “golpe” continua se desenhando; somando novas peças ao quebra-cabeças. leia aqui se interessar]
Se essa sequencia de fatos faz sentido pra você, por favor leia e repasse o papel. Faça uma cópia. Guarde. Compartilhe. Só peço o cuidado de compartilharem sempre integralmente. Qualquer pessoa mal-intencionada pode usar coisas que eu disse para outros fins. Não quero isso.
Quero apenas que vocês sigam minha linha de raciocínio e me digam: estamos mesmo diante da possibilidade iminente de um golpe?
Estou louca?
Espero sinceramente que sim. Mas acho que não.
1615+3421133+1222414576++1767+161112134+2++711121111++61+6351592812+939197
Fonte> https://medium.com/primavera-brasileira/dfa6bc73bd8a
Está tudo tão estranho, e não é à toa.
Um relato do quebra-cabeças que fui montando nos últimos dias. Aviso que o post é longo, mas prometo fazer valer cada palavra.
[*nota da autora, adicionada após muitos comentários e compartilhamentos desviando um pouco o sentido do texto: este é um texto de esquerda]
Começo explicando que não ia postar este texto na internet. Com medo. Pode parecer bobagem, mas um pressentimento me dizia que o papel impresso seria melhor. O papel impresso garantiria maiores chances de as pessoas lerem tudo, menores chances de copiarem trechos isolados destruindo todo o raciocínio necessário.
Enquanto forma de comunicação, o texto exige uma linearidade que é difícil. Difícil transformar os fatos, as coisas que vi e vivi nos últimos dias em texto. Estou falando aqui das ruas de São Paulo e da diferença entre o que vejo acontecer e o que está sendo propagandeado nos meios de comunicação e até mesmo em alguns blogs.
Talvez essa dimensão da coisa me seja possível porque conheço realmente muita gente, de vários círculos; talvez porque sempre tenha sido ligada à militância política, desde adolescente; talvez porque tenha tido a oportunidade de ir às ruas; talvez porque pude estar conectada na maior parte do tempo. Não sei. Mas gostaria de compartilhar com vocês.
E gostaria que, ao fim, me dissessem se estou louca. Eu espero verdadeiramente que sim, pois a minha impressão é a de que tudo é muito mais grave do que está parecendo.
Tentei escrever este texto mais ou menos em ordem cronológica. Se não foi uma boa estratégia, por favor me avisem e eu busco uma maneira melhor de contar. Peço paciência. O texto é longo.
1. Contexto é bom e mantém a pauta no lugar
Hoje é dia 18 de junho de 2013. Há uma semana, no dia 10, cerca de 5 mil pessoas foram violentamente reprimidas pela Policia Militar paulista na Avenida Paulista, símbolo da cidade de São Paulo. Com a transmissão dos horrores provocados pela PM pela internet, muitas pessoas se mobilizaram para participar do ato seguinte, que seria realizado no dia 13. A pauta era a revogação no aumento das tarifas de ônibus, que já são caras e já excluem diversos cidadãos de seu direito de ir e vir, frequentando a própria cidade onde moram.
No dia 13, então, aconteceu a primeira coisa estranha, que acendeu uma luzinha amarela (quase vermelha de tão laranja) na minha cabeça: os editoriais da folha e do estadão aprovavam o que a PM tinha feito no dia 10 de junho e, mais do que isso, incentivavam ações violentas da pm “em nome do trânsito” [aliás, alguém me faz um documentário sensacional com esse título, faz favor? ]. Guardem essa informação.
Logo após esses editoriais, no fim do dia, a PM reprimiu cerca de 20mil pessoas. Acompanhei tudo de casa, em outra cidade. Na primeira hora de concentração para a manifestação foram presas 70 pessoas, por sua intenção de participar do protesto. Essa intenção era identificada pela PM com o agora famoso “porte de vinagre” (já que vinagre atenua efeitos do gás lacrimogêneo). Muitas pessoas saíram feridas nesse dia e, com os horrores novamente transmitidos - mas dessa vez também pelos grandes meios de comunicação, inclusive esses dos editoriais da manhã, que tiveram suas equipes de reportagem gravemente feridas -, muita gente se mobilizou para o próximo ato.
2. Desonestidade pouca é bobagem
No próprio dia 13, à noite, aconteceu a segunda “coisa estranha”. Logo no final da pancadaria na região da Paulista, sabíamos que o próximo ato seria na segunda-feira, dia 17 de junho. Me incluíram num evento no Facebook, com exatamente o mesmo nome dos eventos do MPL, as mesmas imagens, bandeiras, etc. Só que marcado para sexta-feira, o dia seguinte. Eu dei “ok”, entrei no evento, e comecei a reparar em posts muito, mas muito esquisitos. Bandeiras que não eram as do MPL (que conheço desde adolescente), discursos muito voltados à direita, entre outros. O que estava ali não era o projeto de cidade e de país que eu defendo, ou que o MPL defende.
Dei uma olhada melhor: eram três pessoas que haviam criado o evento. Fucei o pouco que fica público no perfil de cada um. Não encontrei nenhuma postagem sobre nenhuma causa política. Apenas postagens sobre outros assuntos. Lá no fim de um dos perfis, porém, encontrei uma postagem com um grupo de pessoas em alguma das tais marchas contra a corrupção. Alguma coisa com a palavra “Juventude”, não me lembro bem. Ficou claro que não tinha nada a ver com o MPL e, pior que isso, estavam tentando se passar pelo MPL.
Alguém me deu um toque e observei que a descrição dizia o trajeto da manifestação (coisa que o MPL nunca fez, até hoje, sabiamente). Além disso, na descrição havia propostas como “ir ao prédio da rede globo” e “cantar o hino nacional”, “todos vestidos de branco”. O alerta vermelho novamente acendeu na minha cabeça. Hino nacional é coisa de integralista, de fascista. Vestir branco é coisa de movimentos em geral muito ou totalmente despolitizados. Basta um mínimo de perspectiva histórica pra sacar. Pois bem.
Ajudei a alertar sobre a desonestidade de quem quer que estivesse organizando aquilo e meu alerta chegou a uma das pessoas que, parece, estavam envolvidas nessa organização (ou conhecia quem estava). O discurso dela, que conhece alguém que eu conheço, era totalmente despolitizado. Ela falava em “paz”, “corrupção” e outras palavras de ordem vazias que não representam reivindicação concreta alguma, e muito menos um projeto de qualquer tipo para a sociedade, a cidade de São Paulo, etc. Mais um pouco de perspectiva histórica e a gente entende no que é que palavras de ordem e reivindicações vazias aleatórias acabam. Depois de fazer essa breve mobilização na internet com várias outras pessoas, acabaram mudando o nome e a foto do evento, no próprio dia 13 de noitão. No dia seguinte transferiram o evento para a segunda-feira, “para unir as forças”, diziam.
3. E o juiz apita! Começa a partida!
Seguiu-se um final de semana extremamente violento em diversos lugares do país. Era o início da Copa das Confederações e muitos manifestantes foram protestar pelo direito de protestarem. O que houve em sp mostrou que esse direito estava ameaçado. Além disso, com a tal “lei da copa”, uma legislação provisória que vale durante os eventos da FIFA, em algumas áreas publicas se tornam proibidas quaisquer tipos de manifestações políticas. Quer dizer, mais uma ameaça a esse direito tão fundamental numa [suposta] democracia.
No final de semana as manifestações não foram tão grandes, mas significativas em ao menos três cidades: Belo Horizonte, Brasília e Rio de Janeiro. No DF e no RJ as polícias militares seguiram a receita paulista e foram extremamente violentas. A polícia mineira, porém, parecia um exemplo de atuação cidadã, que repassamos, compartilhamos e apoiamos em redes sociais do lado de cá do sudeste.
Não me lembro bem, mas acho que foi no intervalo entre uma coisa e outra que percebi a terceira “coisa estranha”. Um pouco depois do massacre na região da Paulista, e um pouco antes do final de semana de horrores, mais um sinal: ficamos sabendo que uma conhecida distante, depois do dia 13, pegou um ônibus para ir ao Rio de Janeiro. Essa pessoa contou que a PM paulista parou o ônibus na estrada, antes de sair do Estado de São Paulo. Mandaram os passageiros descerem e policiais entraram no veículo. Quando os passageiros subiram novamente, todas as coisas, bolsas, malas e mochilas estavam reviradas. A policial perguntou a essa pessoa se ela tinha participado de algum dos protestos. Pediu pra ver o celular e checou se havia vídeos, fotografias, etc.
Não à toa e no mesmo “clima”, conto pra vocês a quarta “coisa estranha”: descobrimos que, após o ato em BH, um rapaz identificado como uma das lideranças políticas de lá foi preso, em sua casa. Parece que a nossa polícia exemplar não era tão exemplar assim, mas agora ninguém compartilhava mais. Coisas semelhantes aconteceram em Brasília, antes mesmo das manifestações começarem.
4. Sequestraram a pauta?
Então veio a segunda-feira. Dia 17 de junho de 2013. Ontem. Havia muita gente se prontificando a participar dos protestos, guias de segurança compartilhados nas redes, gente montando pontos de apoio, etc. Uma verdadeira mobilização para que muita gente se mobilizasse. Estávamos otimistas.
Curiosamente, os mesmos meios de comunicação conservadores que incentivaram as ações violentas da PM na quinta-feira anterior (13) de manhã, em seus editoriais, agora diziam que de fato as pessoas deveriam ir às ruas. Só que com outras bandeiras. Isso não seria um problema, se as pessoas não tivessem, de fato, ido à rua com as bandeiras pautadas por esses grupos políticos (representados por esses meios de comunicação). O clima, na segunda-feira, era outro. Era como se a manifestação não fosse política e como se não estivesse acontecendo no mesmo planeta em que eu vivo. Meu otimismo começou a decair.
A pauta foi sequestrada por pessoas que estavam, havia alguns dias, condenando os manifestantes por terem parado o trânsito, e que são parte dos grupos sociais que sempre criminalizaram os movimentos sociais no Brasil (representados por um pedaço da classe política, estatisticamente o mais corrupto - não, não está nem perto de ser o PT -, e pelos meios de comunicações que se beneficiam de uma política de concessões da época da ditadura). De repente se falava em impeachment da presidenta. As pessoas usavam a bandeira nacional e se pintavam de verde e amarelo como ordenado por grandes figurões da mídia de massas, colunistas de opinião extremamente populares e conservadores.
As reações de militantes variavam. Houve quem achasse lindo, afinal de contas, era o povo nas ruas. Houve quem desconfiasse. Houve quem se revoltasse. Houve quem, entre todos os sentimentos possíveis, ficasse absolutamente confuso. Qualquer levante popular em que a pauta não eh muito definida cria uma situação de instabilidade política que pode virar qualquer coisa. Vimos isso no início do Estado Novo e no golpe de 1964, ambos extremamente fascistas. Não quer dizer que desta vez seria igual, mas a história me dizia pra ficar atenta.
5. Não, sequestraram o ato!
A passeata do dia 17, segunda-feira, estava marcada para sair do Largo da Batata, que fica numa das pontas da avenida Faria Lima. Não se sabia, não havia decisão ainda, do que se faria depois. Aos que não entendem, a falta de um trajeto pré-definido se justifica muito bem por duas percepções: (i) a de que é fácil armar emboscadas para repressão quando divulga-se o trajeto; e, (ii) mais importante do que isso, a percepção de que são as pessoas se manifestando, na rua, que devem definir na hora o que fazer. [e aqui, se vocês forem espertos, verão exatamente onde está a minha contradição - que não nego, também me confunde]
A passeata parecia uma comemoração de final de copa do mundo. Irônico, não? Começamos a teorizar (sem muita teoria) que talvez essa fosse a única referência de manifestações públicas que as pessoas tivessem, em massa:o futebol. Os gritos eram do futebol, as palavras de ordem eram do futebol. Muitas camisetas também eram do futebol. Havia inclusive uns imbecis soltando rojões, o que não é muito esperto pois pode gerar muito pânico considerando que havia poucos dias muita gente ali tinha sido bombardeada com gás lacrimogêneo. Havia pessoas brincando com fogo. [guardem essa informação do fogo também]
Agora uma pausa: vocês se lembram do fato estranho número dois? O evento falso no facebook? Bom, o trajeto desse evento falso incluía a Berrini, a ponte Estaiada e o palácio dos Bandeirantes, sede do governo do Estado. Reparem só.
Quando a passeata chegou ao cruzamento da Faria Lima com a Juscelino, fomos praticamente empurrados para o lado direito. Nessa hora achamos aquilo muito esquisito. Em nossas cabeças, só fazia sentido ir à Paulista, onde havíamos sido proibidos de entrar havia alguns dias. Era uma questão de honra, de simbologia, de tudo. Resolvemos parar para descobrir se havia gente indo para o lado oposto e subindo a Brigadeiro até a Paulista. Umas amigas disseram que estavam na boca do túnel. Avisei pra não irem pelo túnel que era roubada. Elas disseram então que estavam seguindo a passeata pela ponte, atravessando a Marginal Pinheiros.
Demoramos um tanto pra descobrirmos, já prontos pra ir para casa broxados, que havia gente subindo para o outro lado. Gente indo à esquerda. Era lá que preferíamos estar. Encontramos um outro grupo de pessoas conhecidas e amigas e seguimos juntos. As palavras de ordem não mudaram. Eram as mesmas em todos os lugares. As pessoas reproduziam qualquer frase de efeito tosca de maneira acrítica, sem pensar no que estavam dizendo. Efeito “multidão”, deve ser.
As frases me incomodaram muito. Nem uma só palavra sobre o governador que ordenara à PM descer bala, cassetete e gás na galera havia poucos dias. Que promove o genocídio da juventude negra nessa cidade todos os dias, há 20 anos. Nem mesmo uma. Os culpados de todos os problemas do mundo, para os verde-amarelos-bandeira-hino eram o prefeito e a presidenta. Ou essas pessoas são ignorantes, ou são extremamente desonestas.
Nem chegamos à Paulista, incomodados com aquilo. Fomos para casa nos sentindo muito esquisitos. Aí então conseguimos entender que aquelas pessoas do evento falso no facebook tinham conseguido de alguma maneira manobrar uma parte muito grande de pessoas que queria ir se manifestar em outro lugar. A falta de informação foi o que deu poder para esse grupo naquele momento específico. Mas quem era esse grupo? Não sei exatamente. Mas fiquei incomodada.
6. O centro em chamas.
Quem diria que essa sensação bizarra e sem nome da segunda-feira faria todo sentido no dia seguinte? Fez. Infelizmente fez. O dia seguinte, “hoje”, dia 18 de junho de 2013, seria decisivo. Veríamos se as pessoas se desmobilizariam, se a pauta da revogação do aumento se fortaleceria. Essa era minha esperança que, infelizmente, não se confirmou. A partir daqui são todos fatos recentes, enquanto escrevo e vou tentar explica-los em ordem cronológica. Aviso que foram fazendo sentido aos poucos, conforme falávamos com pessoas, ouvíamos relatos, descobríamos novas informações. Essa é minha tentativa de relatar o que eu vi, vivi, experienciei.
No fim da tarde, pegamos o metrô Faria Lima lotadíssimo um pouco depois do horário marcado para a manifestação. Perguntei na internet, em redes sociais, se o ato ainda estava na concentração ou se estava andando, e para onde. Minha intenção era saber em qual estação descer. Me disseram, tomando a televisão como referencia (que é a referencia possível, já que não havia um único comunicado oficial do MPL em lugar algum) que o ato estava na prefeitura. Guardem essa informação.
Fomos então até o metrô República. Helicópteros diversos sobrevoavam a praça e reparei na quinta “coisa estranha”: quase não havia polícia. Acho que vimos uns três ou quatro controlando curiosamente a ENTRADA do metrô e não a saída… Quer dizer, quem entrasse no metro tinha mais chance de ser abordado do que quem estava saindo, ao contrário do dia 13.
A manifestação estava passando ali e fomos seguindo, até que percebemos que a prefeitura era outro lado. Para onde estavam indo essas pessoas? Não sabíamos, mas pelos gritos, pelo clima de torcida de futebol, sabíamos que não queríamos estar ali, endossando algo em que não acreditávamos nem um pouco e que já estávamos julgando ser meio perigoso. Quando passamos em frente à câmara de vereadores, a manifestação começou a vaiar e xingar em massa. Oras, não foram eles também que encheram aquela câmara com vereadores? O discurso de ser “apolítico” ou “contra” a classe política serve a um único interesse, a história e a sociologia nos mostram: o dos grupos conservadores para continuarem tocando a estrutura social injusta como ela é, sem grandes mudanças. Pois era esse o discurso repetido ali.
Resolvemos então descer pela rua Jandaia e tentar voltar à Sé, pois disseram nas redes sociais que o ato real, do MPL, estava no Parque Dom Pedro. Como aquilo fazia mais sentido do que um monte de pessoas bem esquisitas, com cartazes bem bizarros, subindo para a Paulista, lá fomos nós.
Outro fato estranho, número seis: no meio da Rua Jandaia, num local bem visível para qualquer passante nos viadutos do centro, um colchão em chamas. A manifestação sequer tinha passado ali. Uma rua deserta e um colchão em chamas. Para quê? Que tipo de sinal era aquele? Quem estava mandando e quem estava recebendo? Guardamos as mascaras de proteção com medo de sermos culpados por algo que não sabíamos sequer de onde tinha vindo e passamos rápido pela rua.
Cruzamos com a mesma passeata, mais para cima, que vinha lá da região que fica mais abaixo da Sé, mas não sabíamos ainda de onde. Atrás da catedral, esperamos amigos. Uma amiga disse que o marido estava chateado porque não conseguiu pegar trem na Vila Olímpia. Achamos normal, às vezes a CPTM trava mesmo, daí essa porcaria de transporte e os protestos, etc. pois bem. Guardem a informação.
Uma amiga ligou dizendo que estava perto do teatro municipal e do Vale do Anhangabaú, que estava “pegando fogo”. Imbecil que me sinto agora, na hora achei que ela estava falando que estava cheio de gente, bacana, legal. [que tonta!] Perguntei se era o ato do MPL, se tinha as faixas do MPL. Ela disse que sim mas não confiei muito. Resolvemos ir ver.
[A partir daqui todos os fatos são “estranhos”. Bem estranhos.]
O clima no centro era muito tenso quando chegamos lá. Em nenhum dos outros lugares estava tão tenso. Tudo muito esquisito sem sabermos bem o quê. Os moradores de rua não estavam como quem está em suas casas. Os moradores de rua estavam atentos, em cantos, em grupos. Poucos dormiam. Parecia noite de operação especial da PM (quem frequenta de verdade a cidade de São Paulo, e não apenas o próprio bairro, sabe bem o que é isso entre os moradores de rua).
Só que era ainda mais estranho: não havia polícia. Não havia polícia no centro de São Paulo à noite. No meio de toda essa onda. Não havia polícia alguma. Nadinha de nada, em lugar nenhum.
Na Sé, descobrimos mais ou menos o caminho e fomos mais ou menos andando perto de outras pessoas. Um grupo de franciscanos estava andando perto de nós, também. Vimos uma fumaça preta. Fogo. MUITO fogo. Muito alto. O centro em chamas.
Tentamos chegar mais perto e ver. Havia pessoas trepadas em construções com latas de spray enquanto outros bradavam em volta daquela coisa queimando que não conseguíamos identificar. Outro colchão? Os mesmos que deixaram o colchão queimando na Jandaia? Mas quem eram eles?
De repente algumas pessoas gritaram e nós,mais outros e os franciscanos, corremos achando que talvez o choque estaria avançando. Afinal de contas, era óbvio que a polícia iria descer o cacete em quem tinha levantado aquele fogaréu (aliás, será q ela só tinha visto agora, que estava daquele tamanho todo?). Só que não.
Na corrida descobrimos que era a equipe da TV Record. Estavam fugindo do local - a multidão indo pra cima deles - depois de terem o carro da reportagem queimado. Não, não era um colchão. Era o carro de reportagem de uma rede de televisão. O olhar no rosto da repórter me comoveu. Ela, como nós, não conseguia encontrar muito sentido em tudo que estava acontecendo. Ao lado de onde conversávamos, uns quatro policiais militares. Parados. Assistindo o fogo, a equipe sendo perseguida… Resolvemos dar no pé que bobos nós não somos. Tinha algo muito, mas muito errado (e estranho) ali.
Voltamos andando bem rápido para a Sé, onde os moradores de rua continuavam alertas, e os franciscanos tentavam recolher pertences caídos pelo chão na fuga e se organizarem novamente para dar continuidade a sua missão. Nós não fomos tão bravos e decidimos voltar para nossas casas.
7. Prelúdio de um… golpe?
No metrô um aviso: as estações de trem estavam fechadas. É, pois é, aquela coisa que havíamos falado antes e tal. Mal havíamos chegado em casa, porém, uma conhecida posta no facebook que um amigo não conseguiu chegar em lugar nenhum porque algumas pessoas invadiram os trilhos da CPTM e várias estações ficaram paradas, fechadas. Não era caos “normal” da CPTM, nem problemas “técnicos” como a moça anunciava. Era de propósito. Seriam os mesmos do colchão, do carro da Record?
Lemos, em seguida, em redes sociais, que havia pessoas saqueando lojas e destruindo bancos no centro. Sabíamos que eram o mesmos. Recebi um relato de que uma ocupação de sem-teto foi alvo de tentativa (?) de incêndio. Naquele momento sabíamos que, quem quer que estivesse por trás do “caos” no centro, da depredação de ônibus na frente do Palácio dos Bandeirantes no dia anterior, de tentativas de criar caos na prefeitura, etc. não era o MPL. Também sabíamos que não era nenhum grupo de esquerda: gente de esquerda não quer exterminar sem-teto. Esse plano é de outro grupo político, esse que manteve a PM funcionando nos últimos 20 anos com a mesma estrutura da época da ditadura militar.
Algum tempo depois, mais uma notícia: em Belo Horizonte, onde já se fala de chamar a Força Nacional e onde os protestos foram violentíssimos na segunda-feira, havia ocorrido a mesma coisa. Depredação total do centro da cidade, sem nenhum policial por perto. Nenhunzinho. Muito estranho.
Nessa hora eu já estava convencida de que estamos diante de uma tentativa muito séria de golpe, instauração de estado de exceção, ou algo do tipo. Muito séria. Muito, muito, muito séria. Postei algumas coisas no facebook, vi que havia pessoas compartilhando da minha sensação. Sobretudo quem havia ido às ruas no dia de hoje.
Um pouquinho depois, outra notícia: a nova embaixadora dos EUA no Brasil é a mesma embaixadora que estava trabalhando no Paraguai quando deram um golpe de estado em Fernando Lugo.
Me perguntaram e eu não sei responder qual golpe, nem por que. Mas se o debate pela desmilitarização da polícia e pelo fim da PM parece que finalmente havia irrompido pelos portões da USP, esse seria um ótimo motivo. Nem sempre um golpe é um golpe de Estado. Em 1989 vivemos um golpe midiático de opinião pública, por exemplo. Pode ser que estejamos diante de outro. Essa é a impressão que, ligando esses pontos, eu tenho.
Já vieram me falar que supor golpe “desmobiliza” as pessoas, que ficam em casa com medo. De forma alguma. Um “golpe” não são exércitos adentrando a cidade. Não necessariamente. Um “golpe” pode estar baseado na ideia errônea de que devemos apoiar todo e qualquer tipo de indignação, apenas porque “o povo na rua é tão bonito!”.
Curiosamente, quando falei sobre a manifestação do dia 13 com meus alunos, no dia 14, vários deles me perguntaram se havia chances de golpes militares, tomadas de poder, novas ditaduras. A minha resposta foi apenas uma, que ainda sustento sobre este possível golpe de opinião pública/mídia: em toda e qualquer tentativa de golpe, o que faz com que ela seja ou não bem-sucedida é a resposta popular ao ataque. Em 1964, a resposta popular foi o apoio e passamos a viver numa ditadura. Nos anos 2000, a reposta do povo venezuelano à tentativa de golpe em Chávez foi a de rechaço, e a democracia foi restabelecida.
O ponto é que depende de nós. Depende de estarmos nas ruas apoiando as bandeiras certas (e há pessoas se mobilizando para divulgar em tempo real, de maneira eficaz, onde está o ato contra o aumento da passagem, porque já não podemos dizer que é apenas “um” movimento, como fez Haddad em sua entrevista coletiva). Depende de nos recusarmos a comprar toda e qualquer informação. Depende de levantarmos e irmos ver com nossos próprios olhos o que está acontecendo.
[update: escrevi um pouco melhor sobre como eu acho que esse “golpe” continua se desenhando; somando novas peças ao quebra-cabeças. leia aqui se interessar]
Se essa sequencia de fatos faz sentido pra você, por favor leia e repasse o papel. Faça uma cópia. Guarde. Compartilhe. Só peço o cuidado de compartilharem sempre integralmente. Qualquer pessoa mal-intencionada pode usar coisas que eu disse para outros fins. Não quero isso.
Quero apenas que vocês sigam minha linha de raciocínio e me digam: estamos mesmo diante da possibilidade iminente de um golpe?
Estou louca?
Espero sinceramente que sim. Mas acho que não.
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Fonte> https://medium.com/primavera-brasileira/dfa6bc73bd8a
Que golpe?
Uma explicação necessária e algumas novas peças para o quebra-cabeças dos recentes acontecimentos em todo o país.
[aviso aos navegantes: este texto, como tudo que escrevo, é de esquerda. se você está em dúvida sobre o que isso significa, hoje saiu um vídeo que explica de maneira simples, prática e direta, assim você pode entender melhor como seus posicionamentos se alinham no contexto político-histórico mais geral]
Há pouco mais de 24 horas descobri que um texto que publiquei aqui no Medium tinha se tornado “viral”, como dizem. Não consegui parar de ler comentários, emails, dúvidas, mensagens que chegavam me respondendo se eu estava louca mesmo (por achar que talvez houvesse um golpe de articulando, de alguma maneira). Outros, igualmente interessantes, discordavam de mim e debatiam os pontos que levantei de maneira bem inteligente. Alguns, claro, eram pura baboseira e ódio enrustido e esses, gente, eu não tenho culpa alguma em deletar.
O fato de tantas pessoas compartilharem comigo suas percepções individuais sobre os fatos mais recentes da política, das ruas, me colocou no lugar de espectadora privilegiada. Estou tendo acesso a muitas histórias, relatos, experiências que não teria de outra maneira. Para uma socióloga com um lado de jornalista, é um presente sem tamanho. Agradeço as mensagens e aviso que as responderei na medida do possível (sério, são muitas mesmo).
Essas percepções, histórias, relatos e experiências não deixam de ser peças importantíssimas nesse quebra-cabeças do qual talvez eu esteja sendo porta-voz, mas que claramente não é só meu. Quem não está confuso é porque está de olhos fechados, eu arrisco dizer. Pra ficarmos confusos e confusas todxs de vez, escolhi continuar investigando informalmente esses interesses políticos dissimulados que estão começando a se desenhar um pouco melhor de todos os lados do quadro atual.
Aviso de texto longo.Pois é. De novo. Eu sei, gente. Mas é tanta coisa acontecendo e tão pouco tempo pra organizar a cabeça que não estou encontrando outra saída. Me perdoem. Se quiserem podem imprimir pra ler com calma. Tentei novamente dividir em partes menores pra fluir melhor a leitura.
1. Por que dariam um “golpe”, que golpe seria esse e quem seria responsável?
Essa foi a primeira pergunta que fiz a mim mesma antes da terça-feira (18). Me achei paranóica, na ocasião, porque para mim está claro que: (i) um golpe militar não combinaria tanto com a forma atual que a política brasileira e a política internacional tomaram nas últimas décadas; (ii) o governo atual, embora tenha algumas políticas de esquerda, constrói um projeto neoliberal de Estado; (iii) ainda não se desenhou publicamente nenhuma liderança ou grupo de liderança política que não esteja no poder e possa ameaçar quem foi eleito/a democraticamente.
Se eu defendo esses três pontos, porém, como posso ao mesmo tempo defender que estejamos à beira de um golpe? Do que estou falando, afinal de contas, quando uso a palavra “golpe”?
Bom, mesmo se descartarmos totalmente a possibilidade de um golpe militar (levando como brincadeira/delírio/viagem/paranoia coisas comoessa, essa, essa, essa ou essa), ainda sobram diferentes formas de golpe. Um golpe, nesse caso, também não é necessariamente um golpe de Estado, que destitua a presidenta do cargo para o qual foi democraticamente eleita.
No momento atual, penso ser mais provável um golpe de opinião pública, midiático, para apoiar a instauração de políticas autoritárias e conservadoras dentro de um Estado democrático de direito. Para explicar essa percepção, preciso recorrer, como tantas vezes, à história política, que também me ajuda a explicar que grupos teriam maior interesse nesse tipo de manobra. Mais do que isso, precisamos entender de que maneira o poder sempre foi concentrado na sociedade brasileira e que ferramentas foram usadas para mantê-lo assim.
2. Quem participa do poder público no Brasil?
Em 1824 o senhor Dom Pedro I fez a primeira Constituição Brasileira. Ele era, não esqueçamos, um homem, branco, nobre, proprietário de terras. Pois bem. O direito de voto, nesse documento, se limitava a cidadãos que possuíssem uma certa renda mínima anual (que não era pouca). Chamamos isso de voto censitário. Mulheres e negros não possuíam renda, então acho que vocês conseguem imaginar quem de fato podia participar do sistema político na época.
[caso não tenha ficado claro: homens, brancos, com poder econômico]
[caso não tenha ficado claro: homens, brancos, com poder econômico]
Não houve grandes modificações nesse perfil até o início do século XX, quando a Lei Saraiva acabou com o voto censitário. Teríamos uma república socialista brasileira, logo no início do século? Que nada. Não se iludam. A mesma lei que revogou o voto censitário limitou o direito de voto aos cidadãos alfabetizados (homens ainda, que fique claro).
Caso não tenham se atentado para tal fato, o Brasil não tinha um sistema educacional público massivo. Quem frequentava as poucas escolas públicas (e muitas particulares, sobretudo no exterior) eram os filhos daqueles que já podiam votar antes, porque concentravam o poder econômico do país (latifundiários, escravocratas e seus descendentes, etc). A população negra, por exemplo, foi proibida de frequentar escolas públicas durante muito tempo. As mulheres (que puderam votar apenas partir de 1932, se fossem alfabetizadas) também não tinham escolarização, em geral. Isso quer dizer que, na prática, a mudança não mudava tanta coisa assim.
A próxima grande reforma veio na Constituição de 1934. Em termos de representatividade do povo entre o eleitorado, porém, não avançamos tanto com exceção do direito de voto das mulheres. Durante o Estado Novo (ditadura imposta por Getúlio Vargas) os direitos políticos foram revogados, e a população em geral continuou afastada do poder público. Mesmo após o fim dessa primeira ditadura, o voto continuou condicionado à alfabetização. Na ditadura militar, então, os direitos políticos foram novamente cassados.
Isso tudo significa que foi apenas em 1988 que a população brasileira como um todo conquistou o sufrágio universal. Gente, 1988. São 25 anos de lá pra cá. É pouco, bem pouco.
Isso significa também que, até 1988, a grande maioria da população era absolutamente excluída do poder público. Essa distância tem um efeito importante (e grave): faz com que o Estado pareça ser “eles”, um grupo distante e longínquo, que nada tem a ver com o “nós” daqui. Como se um não afetasse o outro. Como se nós não fôssemos responsáveis pelo Estado e nem o Estado pelas condições de nossas vidas. Sacam? Pois guardem essa informação pra jajá.
Também guardem a informação de que foi apenas em 1988 que o poder econômico deixou de ser, em absoluto, um pré-requisito para exercer algum tipo de participação no Estado. Quer dizer, os efeitos do atrelamento de um e outro nós vemos até hoje (vamos lá conferir o patrimôniodos que conseguem se eleger no legsilativo federal?). É fato inegável. Mas o primeiro pequeno passo para desatrelar poder público e poder econômico foi dado nessa Constituição.
3. Educação e educação política
Uma outra estratégia utilizada (não apenas no Brasil) para manter a população, em massa, afastada do poder público e da política, é a forma como se constróem os sistemas escolares. Em especial, como se definem currículos e obrigações desse tipo de instituição. A quem a escola serve? A quem e a quê ela tem servido ao longo da história do Brasil, quando pensamos em política e no poder público?
Voltemos lá pro “começo”: não havia um sistema educacional centrado no Estado, regulado pelo Estado, gratuito e amplamente disseminado país afora até o século XX. A escola era uma instituição pouco acessível, e a alfabetização também. Para o assunto deste texto, o que importa ainda mais do que isso era a função declarada da escola pública. Pelo menos desde aConstituição de 1946, a escola pública já era pensada não como um direito de todos e um dever do Estado, mas como um serviço apenas para os que não podem pagar uma escola privada.
Então pensem comigo: as pessoas que concentravam poder econômico ocupavam o poder público, pagavam educação privada para seus herdeiros e ainda por cima dirigiam (por estarem no Estado) a educação dos demais. Justo, né? Só que não.
Dirigindo o sistema educacional, o Estado e a economia, essas pessoas (que Marx chamaria bem bonitamente de burguesia e Bourdieu de classe dominante, simplificando um pouco o pensamento dos dois) se encarregaram de, além de excluir os demais cidadãos do poder público, excluí-los da formação política. Isso foi feito, em parte, instaurando ditaduras que cassavam o direito à manifestação e expressão política (a participação em movimentos organizados é uma fonte muito forte e fértil de educação política, sobretudo porque independe da educação formal), mas também excluindo a política das escolas.
Quer dizer, a pouca política que foi ensinada nos últimos 100 anos na maioria das escolas brasileiras (públicas e privadas, é bom lembrar, já que são ambas reguladas pelo mesmo Estado) é uma política conteudista e vazia, inaplicável ao cotidiano de cidadania. Saber o nome de todos os presidentes do Brasil não serve para muito. Ao contrário disso, a educação política para a cidadania passa por saber como funciona o Estado, de que direitos políticos dispõem os cidadãos, qual a diferença entre Estado e governo, o que é um partido, porque o sistema eleitoral brasileiro é partidário, como são distribuídos os votos no legislativo, como são financiadas as campanhas, e por aí vamos.
É disso que estamos falando quando usamos a palavra despolitização. Uma pessoa despolitizada não é uma pessoa incapaz, burra. É uma pessoa que não possui informação política nem formação política. Que não tem conhecimento sobre a política - ou seja, sobre como funciona a disputa pública de poder que orquestra tantas esferas de nossas vidas.
A educação política, portanto, não depende do grau de escolarização da pessoa. Esse é um mito fundamental de ser derrubado.
Essa ausência de educação política (que começou a ser revertida na Constituição de 1988, e continua com medidas como a aprovação do ensino obrigatório de sociologia, mesmo que não sejam suficientes) garantiu que mesmo com direitos políticos assegurados, a população em geral, de forma massiva, não se preocupasse nem desejasse se ocupar da política. Não é uma coincidência que só agora tanta gente esteja, pela primeira vez na vida, buscando informações sobre como funciona o Estado brasileiro. Essa espécie de “despertar”, da forma como está acontecendo[falamos jajá sobre ele], é fruto das decisões políticas que nos antecederam e das disputas que produziram a história do Brasil como ela é (alô, Marx! beijo!).
4. Quanto mais gente, menos corrupção
Então, retomando o que comentei nos pontos anteriores, notamos que: (i) o poder público é concentrado, salvo exceções, nas mãos de representantes de um grupo social que também detém o poder econômico no Brasil; (ii) que esse grupo social sempre teve o poder concentrado em suas mãos ao longo da história do Brasil; (iii) que esse poder concentrado facilitou decisões políticas que o mantinham concentrado, mantendo a população em geral afastada (mesmo que voluntariamente) da política. Uma consequência desse afastamento que não posso me furtar a comentar é a corrupção.
Sim, ela, a famosa, odiada, mal-compreendida, misteriosa corrupção.
Quando militantes de esquerda criticam a reivindicação “contra a corrupção”, o motivo em geral é simples de ser entendido: afinal de contas, quem raios é a favor da corrupção? A bandeira simplificada “contra a corrupção” não diz muita coisa sobre que projeto a pessoa em questão (ou grupo) defende para acabar com ela, ou reduzi-la.
Não quero entrar em detalhes no momento (pretendo escrever um texto exclusivamente sobre isso em breve), mas a corrupção é uma questão estrutural no Brasil e em inúmeros outros países. Ser estrutural quer dizer que é uma prática que não depende tanto de indivíduos específicos, e depende mais das ideias que esses indivíduos têm sobre o que é o Estado. Para sabermos que tipo de medida defendemos como sendo mais eficaz ou mais apropriada para esse “combate”, então, precisamos usar a informação política sobre o Estado brasileiro analisando algumas possíveis características que facilitam ou impulsionam essa prática que desejamos erradicar. Certo?
Pois bem. Acompanhem meu raciocínio aqui.
[*momento provinha-de-sociologia*]
[*momento provinha-de-sociologia*]
1. Qual era a ideia de Estado que estava presente na formação da sociedade brasileira, quando consideramos quem tinha direitos políticos na época da primeira Constituição?
a) o Estado deve atender aos interesses de toda a população
b) o Estado deve atender aos interesses de uma pequena parte da população que concentra o poder econômico
a) o Estado deve atender aos interesses de toda a população
b) o Estado deve atender aos interesses de uma pequena parte da população que concentra o poder econômico
[um doce para quem acertar, como digo aos meus alunos]
2. Qual era a ideia Estado que estava presente na Constituição de 1946, que dizia que a educação pública era uma espécie de “tapa-buracos” para quem não pudesse pagar a educação privada?
a) o Estado deve atender aos interesses de toda a população
b) o Estado deve atender aos interesses de uma pequena parte da população que concentra o poder econômico
a) o Estado deve atender aos interesses de toda a população
b) o Estado deve atender aos interesses de uma pequena parte da população que concentra o poder econômico
[tá fácil? então vejam essa:]
3. Qual era a ideia de Estado que estava presente no processo de despolitização e afastamento da população em relação ao poder público?
a) o Estado deve atender aos interesses de toda a população
b) o Estado deve atender aos interesses de uma pequena parte da população que concentra o poder econômico
a) o Estado deve atender aos interesses de toda a população
b) o Estado deve atender aos interesses de uma pequena parte da população que concentra o poder econômico
[e aí, foram bem? preciso dar o gabarito? ;) ]
Quando o Estado visa atender aos interesses pessoais individuais ou apenas de um pequeno grupo de pessoas, em vez de se orientar pelos interesses, necessidades e direitos da população como um todo, temos um fermento forte para a corrupção. A corrupção nada mais é do que o uso do aparelho do Estado em benefício próprio. O Estado precisa servir a todos. A ideia de quem trabalha pra ele (sejam políticos, funcionários públicos, empresas licitadas e concessionárias, etc) de que ele deve ser usado em benefício próprio é a base, portanto, de toda corrupção.
Manter as pessoas longe da política, do Estado, do poder público, é uma ferramenta poderosa para manter esquemas de corrupção operando. Afinal de contas, se as pessoas deixam “a política aos políticos” e agem como se ela não lhes dissesse respeito, eles se sentem autorizados a governarem apenas para si mesmos. Ao mesmo tempo, com a população distante do Estado, outros atores sociais como funcionários públicos, empresas, empresários, etc. também se sentem mais seguros para envergar o aparelho do Estado em benefício próprio individual. Daí pra haver abuso do Estado em benefício próprio é um pulo.
Não foram o PT, o PSDB, ou qualquer partido atual que inventaram a corrupção. Ela é parte de uma ideia que está enraizada na nossa cultura sobre o que é e o que deve ser o Estado (Dom Pedro manda beijos). Sobre como lidar com o Estado. Sobre a quem o Estado deve servir.
5. Mas e o golpe?
Entender tudo isso sobre o Estado e a política no Brasil nos ajuda a entender, afinal de contas, o que é um “golpe”. Um “golpe” é uma manobra política para transferir poder de um grupo a outro. Um golpe de Estado transfere o poder público de mãos. Um golpe militar faz isso com a ocupação do poder público por militares. Ao contrário de algumas pessoas, eu não penso que nenhuma dessas duas coisas devem acontecer agora, embora não descarte que sejam possíveis. Explico.
Um golpe de Estado precisa necessariamente de um grupo de pessoas cujos interesses não estejam sendo atendidos pelo atual governo. Essas pessoas, que desejam ocupar o poder público para construir um projeto de sociedade diferente daquele que estiver em curso, promovem ou fomentam uma crise política. Com o atual governo fragilizado, aprovam medidas em caráter de “urgência” ou “emergência” destituindo-o. Foi o que aconteceu em 2012 com Fernando Lugo, presidente do Paraguai.
Um golpe militar é quando o grupo que quer destituir o governo em curso e segue os passos típicos de um golpe de Estado é composto por militares, ou faz isso por meio deles. Utilizando-se do poder excepcional que lhes é conferido pelo próprio Estado, as forças armadas ameaçam o chefe do executivo e o destituem de seu cargo. Qualquer semelhança desse uso do aparelho estatal em benefício próprio feito pelos golpes militares com o princípio ideológico que gera corrupção não é mera coincidência.Foi o que aconteceu em 1964 no Brasil, um dos períodos mais corruptos do Estado brasileiro (e nem sou eu que estou dizendo).
É fácil entender, então, a improbabilidade de estarmos diante de um golpe de Estado, seja ele militar ou não: os interesses daquela pequena “elite” que sempre dirigiu e comandou o Brasil continuam sendo atendidos. A presidenta se alinhou com a bancada ruralista, o PT deu espaço para os evangélicos na comissão de direitos humanos. Ambas as bancadas (evangélica e ruralista) representam interesses conservadores que se alinham com os interesses do grande empresariado e das corporações. Até mesmo a mais importante política social realizada nos últimos anos, o bolsa-família(do qual sou defensora ferrenha) está ligada aos mesmos interesses, pois forma mercado consumidor.
Um Estado de exceção como o que tivemos no regime militar tampouco parece adequado. No contexto internacional atual, em que o Brasil é uma economia muito respeitada, um país extremamente conhecido e popular, com bastante poder político, a instalação de uma ditadura muito provavelmente contraria os interesses de empresas, corporações, grandes empresários e organismos internacionais ligados à economia.
Quer dizer: se os militares forem o único setor da sociedade (seguido por alguns loucos no meio da população) que defendem a instalação de uma nova ditadura militar, é extremamente provável que eles não tenham sucesso. A ditadura se instalou em 1964 porque havia largo apoio da população, do empresariado, das empresas e organismos internacionais, e de países hegemônicos no cenário internacional. Na época, a economia do Brasil não era nem de longe o que é hoje, e o papel do Brasil na geopolítica era outro.
6. Então que tipo de “golpe” seria possível?
A partir daqui, procuro montar as peças mais recentes do quebra-cabeças. Tenho percebido uma certa tendência se desenhando e gostaria de compartilhá-la com vocês.
- Como eu havia contado (e as centenas de relatos que recebi em privado após a publicação do texto me confirmaram), em meio ao fervor político das ruas, muitos atos de destruição, saques, etc. começaram a acontecer. Em vários momentos, de várias cidades, a população estranhou a inação da polícia ao ver esses atos, que parecem sempre totalmente dissociados de qualquer cunho político. As condições em que eles acontecem são extremamente suspeitas: - Em São Paulo, o trânisto na frente do Palácio dos Bandeirantes, na segunda-feira (17), foi totalmente evacuado. “Sobraram” misteriosamente alguns ônibus na rua, todos juntos (que em geral não passam por lá, muito menos tantos ao mesmo tempo, quem já frequentou o bairro sabe muito bem). Eles foram quebrados e depredados por algumas pessoas que pareciam não ter nenhum vínculo político com nenhum dos grupos na manifestação, enquanto a polícia (em número reduzidíssimo, inclusive para um dia normal no palácio) assistia. Relatos de outras cidades também falam em ônibus “abandonados” sem ninguém no trajeto das manifestações, horas antes de elas começarem. - No centro de São Paulo, no dia seguinte (18), o fogo no carro da Record, a equipe de reportagem fugindo e a PM assistindo. Relatos de Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Fortaleza e diversas outras cidades chegaram até mim, contando situações muito semelhantes à que descrevi no meu texto anterior.
- O discurso geral de censura a partidos políticos começou a se fortalecer. Na quinta-feira (20), manifestantes de partidos políticos foram violentamente agredidos em várias cidades do país (tive relatos diretos de São Paulo, Rio de Janeiro e Campinas), por manifestantes nacionalistas durante os protestos. Muitos foram gravemente feridos. Na Avenida Paulista, qualquer pessoa vestindo vermelho, que estivesse na rua, era atacada.
- Na mesma madrugada dos ataques a partidos, a Rede Globo passou uma reportagem em seu canal GloboNews, dizendo que “o movimento apartidário venceu”, e falando contra o que chamou de “formas tradicionais de se fazer política” [como partidos, organizações sindicais, etc]. Vale lembrar que o apartidarismo que a Globo disse que apoia é diferente do anti-partidarismo que aconteceu nas ruas e que ela estava apoiando (ao não denunciar, por exemplo).
- Na manhã seguinte (21), em plenário, o senador do PDT-DF Cristóvam Buarque defende a extinção de todos os partidos políticos brasileiros. A quem não sabe, vale lembrar que essa era uma das defesas do fascismo, e uma das marcas do autoritarismo de Getúlio Vargas e, depois, dos militares - a proibição de partidos e organizações políticas.
- Na hora do almoço, uma reportagem no Jornal Hoje da Rede Globo frisava com entrevistas, edição e narração, que as pessoas que estavam saqueando, quebrando patrimônio, etc. “eram organizadas” (usando essas palavras).
- Está para ser votada no Senado uma lei que define os crimes de terrorismo no Brasil. Um dos maiores impasses no texto (e que deve voltar à tona durante a votação) é a inclusão ou não de movimentos sociais e manifestações políticas como atos terroristas (leia aqui).
Considerando essa sequência de fatos, eu vejo se desenhar um golpe midiático para que a opinião pública aceite e defenda a diminuição de direitos políticos. Me parece que a tentativa é de criminalizar movimentos sociais organizados e outras organizações políticas. Mas pode ser também que haja ooutras coisas na jogada. Ainda não dá pra saber.
Eu continuo esperando estar louca.
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