Oi, Mulatinha,
Como vai você, querida
amiga?
Espero que tudo tenha corrido bem com todos vocês no natal e espero que o
mesmo ocorra no Ano novo.
Infelizmente, ainda, não foi desta
vez a minha saída.
Entrar num lugar destes é fácil, é num estalar de dedos,
agora, sair, já é outra coisa, pois demóóóra,
demóóóra.
Estou há 4 anos enjaulado e só
agora, que eu precisei mexer com minha papelada foi que descobri que o numero
da minha execução não existe, pois o fórum da minha cidade não o mandou para o para o sistema.
Hoje tive um
atendimento com um funcionário da Judiciária
daqui e ele me disse que o
documento foi enviado para o TJ, para
apreciação de recurso (que impetra) e essa referida guia (é esse o nome = guia
de Recolhimento Provisório) foi expedida em 2005 e até a referida data não houve
REGISTRO DA EXECUÇÃO e é preciso desse documento para que eu
possa sair de SEMI-ABERTO.
Pedi ao funcionário
para anotar meu nome para agendar-me para uma audiência com o juiz.
Ele o fez.
Portanto, minha querida amiga,
só no fim de
janeiro/inicio de fevereiro vou poder ter uma resolução da minha situação e até
lá eu vou tirando cadeia que nem Nelson Mandela.
Na
audiência com o juiz vou pedir-lhe encarecidamente, para me mandar embora de
R.A.
( Regime Aberto) sem precisar passar pelo semiaberto.
Até lá meu lapso
temporário (começa em 15/01/09) já estará em vigor.
Isso pode ser feito,só
depende da vontade do Juiz.
Recebi sua carta (esta) agora há
pouco e já estou respondendo pois quero que você saiba do meu dia a dia logo.
Hoje aconteceu-me algo desagradável.
Eu tenho ou melhor, estou perdendo a audição paulatinamente e isso já me
acarretou pequenos problemas e contratempos aqui.
Há três contagens por dia, de
manhã, na hora do almoço e à tarde (a contagem confere o numero de presos de
cada cela, todo dia).
Aconteceu que por estar meio surdo, eu não ouvi a
contagem e meus companheiros tiveram que armar o maior griteiro pra eu acordar.
O funcionário que fazia a contagem decerto achou que eu estava dando “canseira!
Nele, atrasando seu serviço e deu-me
cinco dias de “amarelo”, que consiste em ficar na cela (por cinco dias) sem sair pro sol.
Tudo bem
se fosse só isso, mas acontece que quem toma “amarelo” (como dizem aqui)
automaticamente perde o trabalho que estiver exercendo.
Eu fui desligado da Regina, onde eu trabalhava, ou seja, voltei à estaca zero, de tanga, sem ter
uma fonte de renda para me manter aqui.
Imediatamente após eu mandei um “pipa”
(bilhete) para o diretor de disciplina, onde vou lhe explicar que, com 55 anos
em cima de uma cabeça branca (tenho raríssimos cabelos pretos, mulata), eu não
teria, sequer imaginado fazer qualquer coisa que pudesse atrapalhar minha
caminhada, muito menos dar “canseira” num funcionário por querer, pois não sou
nenhuma criança e que isso só aconteceu porque estou ficando surdo.
O diretor de disciplina tem autoridade para
realocar-me de volta ao trabalho.
Eu só não quero perder minha fonte de renda,
querida, pois tirar cadeia sem ter recursos financeiros é o inferno dentro do
inferno.
Logo que aqui cheguei, fiquei sem recursos, sequer, pra comprar um
sabonete, já pensou?
Eu preciso desse trabalho menina, e não sei como vai
ser.
Por enquanto eu tenho um “courinho de rato” ($$$) na folha do pecúlio, mas,
e quando acabar?
Com esse problema no meu benefício, não sei quando é que vou
sair.Até lá...
Diga ao nosso “Tambor” que ainda não
foi desta vez, está bem?
Mas que ela tenha força e paciência, como eu estou
tendo, porque, se eu não saí, ainda, foi
porque ELE achou que, ainda, não era a hora.
Seja feita a Sua Santa Vontade.
Sei que quando o Senhor assim o quiser, Todas a portas se abrirão e poder
humano nenhum conseguirá ir contra a vontade de Deus, para me segurar aqui.
E
tenho dito (essa frase é mais velha que o calcanhar de Aquile. Como a
gente “entrega’ a idade com frases como
essa, já notou?
É quase
o mesmo que falar “é uma brasa mora”, papo-firme, careta, etc.
Note que hoje em
dia, mudaram as palavras mas o sentido é o mesmo, quer ver?
“É uma brasa” virou “É quente (a
ideia é a mesma= a ‘temperatura” do que se fala pois “brasa” é “quente” dão
essa ideia, né?) papo firme virou “Papo reto”, o que dá na mesma.
E careta é
careta mesmo!
Sobre a música do “Tião carreiro e
pardinho” Ipê florido” eu não conheço, mas achei linda a letra.
É isso mesmo.
Sabe, lembra-se daquela música de
Caymmi, por nome (não me lembro) e que fala de mar?
Ah!!! Não!!!
Qual música do
Caymmi não fala do Mar?
Só na minha cabeça.
Mas é uma música como “O bem do
mar” que cada vez que eu ouço eu lembro que quem me ensinou a letra e música
foi você.
*(1) Você vê, Mulata, que eu só tenho boas lembranças de você. Não me
agradeça por dizer que você sempre foi generosa.
Não sou eu quem falo, você é
assim. É o seu jeito.
É o jeito da madeira.
Você deve agradecer, sim, mas é a
Deus por te-la ungido com tão nobre qualidade.
Eu só constatei o que Ele criou.
Só isso.
Acabei de receber um bilhete de uma
amiga da “Terrinha”, tão estranho, um apelo quase desesperado que diz assim:
“Germano , deixe Jesus nascer no seu coração.
Não o aborte ele está e formando
não o aborte. Isaias 49. 1 ao 16”.
Só
isso.
Estranho né?
Essa minha amiga você a conhece: é a “Rita"*(2) que nós chamávamos de "Ritinha"* (2a). Ela foi presa várias vezes por
posse e uso de drogas, tirou alguns anos de cadeia e passou pelo mesmo
sofrimento que estou passando.
Como sempre o que prevaleceu foi a idade (a
natureza que nos dá juízo, o tempo) e ela conseguiu largar dessa maldição.
Tornou-se evangélica até a raiz dos cabelos e durante quatro anos que estou
preso, não falhou um mês sequer, com suas
cartas, sempre com palavras de incentivo
e esperança.
Fez muita “correria” para mim, atrás de documentos e pessoas
amigas, levando recados meus e dando-me notícias da “Terrinha”.
Ás vezes me
mandava selos de R$0,01, o que aqui dentro é ouro pois, sem isso, não podemos
escrever para a família e os amigos.
Aqui, no pecúlio tem selos de 1 centavo
e de porte nacional, mas tem que ter $ para comprar, e quem não tem?
Como é que
faz?
Ela sabe disso, e age.
Nunca me abandonou, nunca me esqueceu e eu sou grato
à ela por essa lealdade.
Nunca me pediu
nada, só ofertou.
É amiga, daquelas que não abandonam amigos no meio do
caminho. Como você.
É por isso que eu a quero bem e a respeito, como irmã.
É
isso.
Volta e meia ela me escreve, sempre com uma palavra amiga e alentadora.
Isso tem preço? Acho que não.
Como você, ela , também trabalha
com confecção, só que de lingerie. É boa no que faz.
É bom ser autônoma, né?
Sem patrão, sem ordens, sem encheção de saco, é um suco.
Com o tempo, você pode aumentar a
produção e aumentar a micro de micro para macro, já pensou quando você chegar
nesse patamar?
Quando eu sair deste lugar, vou viver
aí, (em ...) (pelo menos pretendo), pois tenho emprego arrumado já, quando
sair. (...).
Tem um rapaz na minha cela estudante de engenharia elétrica
terceiro ano só parou porque foi preso
numa “fita” (como dizem aqui) que não tinha nada a ver com ele, só que não
conseguiu provar o que dizia. Já ouviu a frase”Estava no lugar errado, na hora
errada?”
Foi o que houve com ele.
Pois é, ele tem uma firma de prestação de
serviços nesta área e resumindo me
prometeu emprego quando eu sair daqui.
Segundo ele, o ganho dá pra viver
sossegado.
Já pensou, Mulata? Vou poder ter minha casa, meu canto, minhas
coisas, sem ter que incomodar ninguém?
Pra mim é o céu.
Sabe aquelas pessoas que, de
cara, você se dá bem? Foi assim.
Logo que ele chegou aqui, e assim continua. É
um paizão de 38 anos, inteligente, bem
falante e de bons sentimentos, e que num lugar destes, onde você encontra de tudo, de inocentes a “monstros”,
onde o que mais impera é a maldade e o que de pior a raça humana tem, ele é uma
raridade.
Demos-nos muito bem, como pai e
filho. Aproveitei a “deixa” de uma conversa nossa e perguntei se tinha um lugar , na
firma dele, para um velho gagá e meio surdo e a resposta foi positiva. Dias
desses perguntei se ainda estava de pé essa conversa que tivemos início do ano
e a resposta foi :
_ “Claro, Veio, você não me escapa tão fácil.” Gostei. "Bão" né¿
Querida, concordo que nós dois
sempre fomos amigos, mas não nos deixamos levar pelo tesão, que falou mais
alto.
Na idade que tínhamos isso foi algo natural, concorda?
Se, depois, continuamos com tesão
foi porque nos sentíamos bem na companhia um do outro, né? Isso é amizade:
sentir-se bem na companhia de outra
pessoa. Deu “Tambor”.
Mas eu não posso ficar escrevendo
muito sobre tesão, querida,porque depois de
quatro anos vivendo só no meio de machos, sem uma visita, sequer, feminina, voce imagina o jeito que eu estou,
né? Subindo pelas paredes.
Então,
vamos mudar de assunto antes que eu comece a ter ideias de Jerico, está
bem?
Neste lugar, a carência afetiva e
sensual é tanta que a gente fica bobo e pode confundir as bolas, confundindo
manifestação de carinho de amigos com sexo, amor, e todas essas bobagens que
impele a gente a fazer cagadas (desculpe
o palavrão).
Aqui não entra revista
masculina (mulherada pelada), portanto não há válvula de escape, só a
imaginação funciona e é por isso que a gente pensa besteiras, com quem não
deve.
Entendeu porque eu perguntei se alguém
lia as suas cartas?
Porque eu me sinto a vontade para entabular qualquer tipo de assunto com você,
sem constrange-la e sem me constranger, porque você conhece meu coração e minha cabeça e eu a sua.
Outra
pessoa pode levar a mal o que ler, e nós
sabemos que não é nada disso, porque nunca tivemos segredos um para o
outro e nunca nenhum assunto jamais foi considerado tabu entre nós, entendeu? Alguém lê suas cartas¿?
Ôh Mulata,eu não sei quando vou sair
daqui e não vou aguentar de curiosidade de saber sobre a R.V.P. (Regressão a
Vidas Passadas) que você e meu “Pedaço”tiveram.
Quem é a terceira pessoa do
triangulo amoroso?
Assim aliás, quem são as 3 pessoas do triângulo?
Você me mata
de curiosidade.
Pode escrever o que você quiser que não há problema, tá bom?
Ah! Mulata, não tenho paciência para
aguentar até nos vermos pra´que você ou a Filhota me contem.
Conta , vá!
Aqui é
tudo tão ruim que acho que isso me fará bem, vai me deixar sonhando e sonhar,
neste lugar, é bom, pois “distrai o saci”
como diz o “Valeriano.
Me conta como foi essa experiência: É bom?
A gente dorme?
É como um sonho?
A gente tem consciência de que está tendo uma
RVP?
Mulata, para de ser tão formal
comigo assim como se fosse o Sérgio Chapelin que tem “, gravata na voz”.
Não
tenha “gravata” nas palavras e nos assuntos.
Se solte mulher!!!
Eu ainda, sou o mesmo brincalhão que sempre fui.
Aprendi nesses
meus 55 anos que a vida está mais para piada, para se rir (do comportamento
humano) do que para cenhos franzidos. O ser humano coloca honra e virtude no
lugar errado. Você pode, ser um anjo de virtudes mas se você não segue as
“normas” da sociedade, você não é entendida, e é tachada de louca ou “monstro”.
Isso é
hipocrisia. E eu odeio hipocrisia.
A
sociedade é hipócrita. Por isso eu sou
tão “despachado” nas palavras, minha amiga, não é desrespeito e você sabe
disso.
Eu não douro a pílula, sou assim, sempre fui, é o jeito da madeira.
Me conte mais coisas, experiências
vividas por você ou pelo “filhote”. Eu gosto do tema.
Obrigado por não ser “cobrança” o
que você tem a me dizer.
Aqui a gente
tem que medir as palavras, tem que se explicar por qualquer erro que cometa,
por menor que seja, pois, neste lugar, um pedregulho aqui atrás pode se transformar na Pedra de Gibraltar lá na
frente.
Tudo aqui assume ares graves e circunspectos. Parece que a gente vive
num outro planeta (um dia eu lhe conto), vivendo num filme “non sense”.
Encerrando: _ Diga ao “Filhote” que
não se decepcione (não mais que eu ,
né?) porque uma hora eu saio, que ele me
aguarde.
Ah! Judiação, arrumar a casa toda
e eu não poder comparecer, deve ter sido frustrante para ela, né ? Oh dó!
Querida, peça a para ela mandar um remédio Berotec spray, por favor? Agradece , assim mesmo na terceira pessoa como
dizem aqui.
Mande-me umas histórias loucas mas não recorte de
revistas, pois qui eles “embaçam” com
“história” de revistas e com fotos de revistas. Tem que ser escritas.
Fique com Deus e que Ele ilumine
o seu caminho e o de todos os seus.
Beijo no coração. Seu amigo,
“BÊJO”
*(1) Quem vem pra beira do mar
Dorival
Caymmi
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar, ai
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar
Nunca mais quer voltar, ai
Quem vem pra beira do mar, ai
Nunca mais quer voltar
Andei por andar, andei
E todo caminho deu no mar
Andei pelo mar, andei
Nas águas de Dona Janaína
A onda do mar leva
A onda do mar traz
Quem vem pra beira da praia, meu bem
Não volta nunca mais
E todo caminho deu no mar
Andei pelo mar, andei
Nas águas de Dona Janaína
A onda do mar leva
A onda do mar traz
Quem vem pra beira da praia, meu bem
Não volta nunca mais
Nenhum comentário:
Postar um comentário