segunda-feira, 18 de novembro de 2013

(11°) - Saudades do "Nicão" -

                               
                         











                                           




                                    
17 DE JULHO -2009
 E aí amiga minha!
Que bom que você  gostou da carta que eu mandei pro nosso “Bebê”!
Fico feliz com isso.
É querida, você sabe que eu sempre fui meio desligado,  mas quando me interesso por algo eu vou fundo, de cabeça, procuro ler estudar tudo a respeito. 
É o que aconteceu com a  “Filosofia ”.
Quando eu era piá, eu tinha um amigo imaginário ( eu tinha uns  2 ou 3 anos), por nome ‘Lili’. Eu me lembro perfeitamente dele.  
Era um Neguinho sorridente e brincalhão. 
Eu o amava. Brincava e brigava muito com ele ( sempre eu, ele nunca), ele ficava meio nebuloso, meio vaporoso, virava uma sombra. 
Quando estávamos bem, ele era real, palpável. 
Minha mãe, preocupada, contou ao pai dela, meu avô Pedro e este, por sua vez, aconselhou-me  a jogá-lo (olha as ideias) num rio quando viajássemos de trem. 
Eu o fiz. Depois chorei muito porque ele nunca mais apareceu. 
Eu me lembro de tudo isso com riqueza de detalhes. 
E eu só tinha  3 anos de idade! Mas me lembro...
         Durante toda a  minha vida sempre apareceram muitos “Lilis” que angariaram meu amor ( de amigos) e simpatia. 
Tornaram-se grandes amigos meus, até hoje. 
E olha só, o detalhe: 
Todos negros, como o ‘Lili’ e como eu. 
De todos, o que eu mais amei, como se ama a um irmão querido, foi “  o Veio-Veio”, o Nico. Primo de sangue, foi o meu grande anjo da guarda.  
Quando eu fui morar em Campinas, ele arrumou uma desculpa e foi para lá também. 
Dois  “sem-juízo”, fizemos enormes “cagadas” juntos. 
Ambos bebíamos e brigávamos com todos que se  indispusessem com qualquer um de nós. Eu defendia a ele e ele a mim, até a morte, se preciso fosse. 
Sempre que havia  brigas entre nós dois, era eu quem começava e ele, com a  maior paciência comigo, Mulatinha. 
Como o “Lili”. Sempre rindo da minha brabeza. 
E me vencia pela humildade e bom humor.
Era de uma tolerância, compreensão e doçura estremas ao lidar comigo. E eu o amava por isso. Como ao “Lili”.
Quando eu tinha entre sete e dez anos, e caía na cama por causa da bronquite, ele vinha de manhã, após  a aula, e á tarde, depois do almoço, e ficava ao meu lado contando-m histórias inventadas por ele mesmo, usando como personagens as pessoas da nossa vizinhança. 
Dono de um humor sensacional, ele me fazia rir o tempo todo e a tarde (o dia , né¿) passava que eu nem percebia.  
No outro dia lá estava ele, de novo, como uma Sherazade, das mil e uma noites, a me contar novas histórias que me faziam rir demais dando mostras assim, de uma mente fertilíssima para inventar histórias para crianças e de um coração maior que ele próprio.
Muito tempo depois, já ambos adultos, ele era sete anos mais velho que eu), dei-lhe ideia de escrever histórias infantis e ele, com o olhar meio perdido no vazio, um meio sorriso nos lábios, só me dizia: “é mesmo, é sim,he,he!(Esse  he,he, “era o mesmo riso de nosso avô Pedro). Conhecendo-nos,profundamente como nos conhecíamos, eu já sabia que essa reação dele era a  de  quem ouve pela direita e  solta pela esquerda, mas concorda para não ser deselegante. 
Era a eterna humildade que o fazia tão belo como ser humano. 
Era a velha humildade que, em vez de o diminuí-lo, agigantava-o, tornando-o um ser ímpar. E era por isso que eu o amava.
Aos 21 anos de idade morre a Tia Anísia, mãe dele. 
E como já era órfão de pai, ao perder a mãe, sem ter irmãos, apegou-se, mais ainda a, a  mim. E eu a  ele. 
Desandou na bebida, tornou-se um alcoólico “anonimo”, dos mais famosos (rs,rs). Eu o levava para casa, dando-lhe “pitos”para não beber mais, mas quem diz “de”¿engatou-se com uma ‘negona’ “macumbeira” que bebia mais que ele e  que só o arrastou cada vez mais para o fundo do poço, quando ele resolveu parar de beber. 
Inteligente e culto, fez exame para funcionário público, para trabalhar na Casa da lavoura  e foi o primeiro colocado na região toda (Sorocaba inclusa). Abandonou a ‘negona’(que do jeito dela , o amava muito e juntou-se com uma mulher(loira falsa) que lhe deu um casal de filhos( o piá é a cópia xerox dele, é impressionante a semelhança física). Melhor de vida, comprou um carrinho e pouco tempo depois acidentou-se. 
Um ônibus colheu-o em cheio, quando ele se preparava para fazer o contorno do trevo! Em coma, não pude visitá-lo. 
Ficou meio “zureta”, pois bateu a  cabeça, rendendo-lhe feias cicatrizes no rosto. Esqueceu-se de todo mundo, menos da Tia Glória. 
E de mim.Tempos depois voltou a beber, pois sua companheira passou a traí-lo descaradamente. A bebida, aliada ao diabetes violento da qual padecia ( o mesmo que matou sua mãe)acabaram por render-lhe um A.V.C. Com um lado do corpo paralisado e aquele jeito meio abobado que o  derrame provoca, foi assim que ele recebeu minha pergunta( de novo ele não se lembrava de  ninguém): _ Quem sou eu¿
_ “ O Veio-Veio, meu irmão! 
Foi a resposta.Desculpe-me Mulatinha, está difícil escrever, as lágrimas não deixam. 
Dá um tempinho............Pronto, já passou!
 Ele falava mal e arrastado, por causa do A.V.C., e embora não se lembrasse nem da própria mulher e de seus filhos, ele lembrava-se de mim. 
Que amor hein?
Agora era a minha vez de sentar-me ao seu lado e, como uma Sherazade, contar-lhe histórias inventadas.
Mas, quem diz “de”? 
Esse “dom” era dele. 
Só dele. 
E ao dizer-lhe isso, ele, com o olhar meio perdido no vazio, com um meio sorriso nos lábios, desta vez sem força de  expressão e, sim ocasionado pela paralisia parcial de seu rosto, sem nenhuma dificuldade respondeu-me: 
_“É mesmo, é sim, hê,hê!
Foi a última vez que o vi com vida.
 Um violento e derradeiro ataque de A.V.C. o levou.


Desde de ontem ele não me sai da cabeça.
Eu estava muito angustiado com umas situações que estou passando aqui (dores emocionais, abdominais, solidão, saudades, situação jurídica, etc), quando tive  a nítida sensação auditiva de sua voz, dizendo-me: 
_“Paciência, Veio-Veio, paciência”! e seu rosto me veio na tela da memória, de uma forma tão nítida, tão forte, sorridente que, quando dei por mim, as lágrimas estavam a me escorrer pelo queixo e uma palavra me martelava a cabeça: 
Que saudade!
 Meus Deus, que saudade, que falta me faz! 
Chorei muito, muito, de lavar a alma. 
Quando parei, uma enorme sensação de paz e “quase” alegria me invadiu a boca do estômago, o peito, a alma. 
Agradeci a Deus por permitir que ele viesse me visitar, como fazia, sempre que eu precisava de um amigo, de uma Sherazade, de meu “Lili”
   Não era nada disso que eu ia lhe escrever Mulatinha, mas quando vi, foi o que saiu.
 Acho que de alguma forma ele queria que você soubesse disso.
Pergunte-lhe. Talvez você ouça, como resposta: 
_“É mesmo, é sim, he,he!”
Com a alma lavada, seu sempre amigo.
17/07/09
Que saudades dele!
                       
P.S._ Deixe o  meu“Tambor” ler isso. É um retrato simples do “Veio-Veio”, primo dela e que foi um ser humano sensacional. 
Acho que ela  irá gostar, sensível que é... beijos no coração, amiga minha.  




                                                                       


                                                                          (“Veio-Veio”, )



 (Porque a História de um homem, não pode terminar num túmulo frio e escuro)


                                                      


*_(Minha eterna gratidão ao velho e bom amigo Nicão, por tudo o que ele representou em nossas vidas!

(Mulatinha)

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